Manuel Castelo Branco, Visão on line,

 

Para compreender o papel do setor empresarial no combate à corrupção, torna-se necessário compreender o seu papel na criação desse mesmo fenómeno, o qual não é um papel passivo. Não é suficiente declarar que as empresas deveriam rejeitar e condenar a corrupção por parte de funcionários públicos sempre que dela têm conhecimento.

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Uma das poucas associações empresariais portuguesas a ter produzido e a disponibilizar na sua página web um código de ética é a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP). No seu “Código de ética para o comércio e serviços”, esta confederação refere-se ao fenómeno da corrupção, mas fá-lo de uma forma enviesada e parcial. Nesse documento, a referência à questão da corrupção está incluída numa secção com o título “Responsabilidade social empresarial para com o Estado” e especifica que “as empresas devem cumprir com todas as suas obrigações perante o Estado, designadamente, as fiscais e repudiar eventuais práticas de corrupção dos agentes do Estado sempre que delas tomem conhecimento”.

A abordagem ao fenómeno da corrupção subjacente à forma que a CCP propõe para o combater, embora muito comum, é enviesada e parcial. Ela baseia-se na definição clássica de corrupção como abuso de poder público para obter benefícios privados, muito popular entre economistas e durante muitos anos utilizada pelo Banco Mundial. Tal visão é parcial porque restringe a corrupção a relações em que pelo menos uma das partes é um agente do sector público, excluindo assim a corrupção que ocorre exclusivamente entre atores do setor privado. Na verdade, a prática da corrupção é tão comum entre empresas como entre o Estado e agentes do sector privado. Basta pensar no quão frequentes são as tentativas de subornar os compradores de grandes cadeias por parte de fornecedores. Por outro lado, ao retratar a corrupção como um processo de via única incitado pela ganância de agentes do setor público, esta visão da corrupção é também enviesada contra uma das partes (o funcionário público). Esta abordagem oculta o verdadeiro papel desempenhado pelo setor privado na corrupção, conduzindo o mais das vezes a uma visão limitada do papel deste na luta contra a corrupção.

No seu livro de 2013 “De máquinas de prazer a comunidades morais”(1), Geoffrey Hodgson, reputado economista britânico, aponta a hegemonia de uma ideologia individualista e libertária, em cuja expansão Milton Friedman e Friedrich Hayek desempenharam um papel fundamental, como fator explicativo da fixação no setor público presente na abordagem à corrupção dominante entre os economistas. Tal ideologia aponta as suas baterias ao abuso de poder por parte dos agentes do Estado, não lhe merecendo o mesmo nível de preocupação o abuso de poder por parte dos administradores de grandes empresas. Para Hodgson, este enviesamento no sentido de uma preocupação quase exclusiva com o setor público é parcialmente explicada pela noção ideológica de que o setor privado corresponde a uma zona de liberdade individual sem constrangimentos, enquanto o setor público representa o seu contrário e deve ser objeto de escrutínio rigoroso. De acordo com esta perspetiva, a única solução para o problema da corrupção é a redução do peso do Estado.

Para compreender o papel do setor privado no combate à corrupção, torna-se necessário perceber o seu papel na criação desse mesmo fenómeno, o qual não é um papel passivo. Para ter uma ideia das práticas corruptoras das grandes empresas, basta analisar o relatório de 2014 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) sobre suborno transfronteiriço(2), onde se analisam 427 casos de suborno registados desde 1999 e se dá conta de que a maioria desses casos são de responsabilidade de grandes empresas e envolvem elementos das suas administrações, desmascarando o mito do “empregado malfeitor”, como se afirma no próprio relatório.

Não é suficiente declarar que as empresas deveriam rejeitar e condenar a corrupção por parte de funcionários públicos sempre que dela têm conhecimento. Uma vez que são uma fonte das práticas de corrupção, as empresas são uma parte fundamental do problema. Por isso, elas também podem contribuir significativamente para a sua mitigação.

 

Notas:

(1) From Pleasure Machines to Moral Communities: An Evolutionary Economics without Homo Economicus, University of Chicago Press, 2013.

(2) OCDE (2014) Foreign Bribery Report: An Analysis of the Crime of Bribery of Foreign Public Officials: http://www.oecd.org/corruption/oecd-foreign-bribery-report-9789264226616-en.htm