Carlos Pimenta, Visão on line,

 

Estão reunidas todas as condições para a prática de fraudes

...

1. “Processos de (re)privatização do setor eléctrico” é um relatório de auditoria do Tribunal de Contas, início de um trabalho de análise escrupulosa das privatizações aceleradas desde as imposições das instâncias da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional. Analisa a legalidade, os procedimentos e as contas.

Esteve nas bocas do mundo durante algum tempo, retirando uns as conclusões favoráveis ao Governo (nomeadamente o ter sido vantajoso, no imediato, para os «contribuintes»), salientando outros o pouco patriotismo governamental (incidindo no interesse nacional das empresas privatizadas) ou a transparência procedimental (não aplicação de boas práticas recomendadas pela OCDE, aligeiramento no cumprimento de algumas leis, por exemplo).

Começando por saudar a iniciativa do Tribunal de Contas, que não podia ir além do que são as suas competências, e reconhecendo a relevância da inquietação de consciências na contemplação do curto prazo, não podemos abster-nos de reconhecer que mais uma vez algumas questões de fundo foram totalmente ignoradas.

2. Embora não seja esse o objectivo desta crónica que tem como referência a prevenção e combate à fraude e à corrupção, temos de chamar a atenção para uma questão de fundo, limitando-nos à sua problematização.

Uma hipótese inquestionável do trabalho é o “ambiente externo criado à volta do chamado consenso de Washington” (§7). Um consenso que envolveu duas instituições excluídas da democracia (o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial) e o representante de apenas um país, o mesmo que controla politicamente os dois anteriores, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Como deve ter sido fácil obter um consenso para impor ao mundo!

O seu programa é elucidativo: a) uma apertada disciplina orçamental, tendencialmente a anulação dos défices dos orçamentos dos diversos países; b) a redução dos gastos públicos em subsídios e maior investimento em sectores importantes para o desenvolvimento; c) a reforma fiscal ampliando a base de tributação; d) a «liberalização» das taxas de juro, isto é, redução da intervenção pública em tal matéria; e) a adopção de taxas de câmbio exclusivamente fixadas pelo mercado; f) o comércio externo sem qualquer entrave ou limitação política; g) a eliminação de quaisquer barreiras aos investimentos directos estrangeiros; h) a privatização das empresas com participação do Estado, invocando razões ideológicas e pragmáticas, para redução das dívidas; i) a ausência de qualquer regulação dos mercados; j) a imperiosa segurança jurídica da propriedade privada.

Por outras palavras, o consenso de Washington é, na sua génese um desrespeito pela democracia (onde estava a ONU?), e redu-la a um mero formalismo (em cada país só é aceitável um governo que respeite este «acordo» da globalização). Elegeu como donos do mundo o capital financeiro e criou condições para transformar os cidadãos em «contribuintes».

Será possível não debater e equacionar estas propostas? Será possível olhar para a árvore (a política de um governo) ou para o seu ramo ou folha (uma privatização) sem nos questionarmos o que fazemos nesta floresta e como utilizar a bússola para vermos o solo?

Para se criticar, para valorizar o correcto e por em causa o errado, o que se diz, temos que começar por perceber o que se não diz. Este silêncio é encobrimento, imposição de mitos e afastamento de uma análise científico. Por isso não é possível analisar as privatizações sem pensar nas nacionalizações. Ambas têm realidade histórica, ambas têm vantagens e desvantagens, ambas devem ser equacionadas numa análise casuística, desideologizada e descomplexada.

3.
Falemos então ‒ entre outros temas prementes em relação à fraude ‒ do risco de fraude.

Atentamos a algumas constatações da auditoria:

  • O processo da privatização enviado para as entidades reguladoras e fiscalizadoras “incluem apenas os elementos que integram o processo de venda, não integrando o relatório da avaliação económica e financeira da empresa e os pareceres e relatório da Comissão Especial para o Acompanhamento” (§26).
  • “não foram disponibilizados [ao Tribunal de Contas] os processos físicos e/ou electrónicos” (§28).
  • “O método de privatização escolhido foi o da venda directa” (§33) sem “qualquer cláusula de penalização para (…) o incumprimento” na “salvaguarda do interesse nacional” (§40), não seguindo as «boas práticas» adoptadas na generalidade dos países europeus (§44).
  • A Comissão Especial para Acompanhamento (CEA) depende do executante da privatização porque “a constituição da CEA é uma opção do Governo”. Além disso só foi constituída “na fase final do processo”, cingindo-se a emitir opinião” (§48).
  • Não foram seguidas as recomendações da OCDE de «boas práticas» “cabendo sempre ao Governo a última palavra nesta matéria e havendo, também, relevantes poderes confiados à administração indirecta do Estado” (§49).
  • “O Governo nunca instituiu medidas obrigatórias de reporte de informação por parte das entidades executoras dos processos de privatização” (§61).
  • “Não foi efectuada [até à data da auditoria] qualquer apreciação a posteiori dos resultados obtidos” (§64).
  • Os serviços de consultadoria financeira foram contratados “por ajuste directo, independentemente do preço, de entre as entidades constantes numa lista de candidatos pré-qualificados” (§67), o que diverge das normas comunitárias (§68). Nem essas regras foram cumpridas (§72 a 86). Esta situação “põe em causa o princípio da segregação de funções”, desrespeitando normas estabelecidas (§87).
  • “O incumprimento das orientações da DGTF [Direcção Geral do Tesouro e das Finanças] em matéria de contratação” e “a não publicação dos contratos no portal www.base.gov.pt” (§ 93)
  • “A PARPÚBLICA não aplica o CCP [Código dos Contratos Públicos]” (§97)

Qualquer dos leitores perceberá que quando se concentra todo o poder de decisão numa entidade, quando os diversos intervenientes não são independentes da entidade decisora, aquando não se partilha funções por várias entidades, quando se eliminam os mecanismos de controlo e fiscalização, quando deliberadamente não se seguem as «boas práticas» testadas, quando não se prestam contas, quando escasseiam os documentos e a informação, quando a transparência se torna opaca, estão reunidas todas as condições para a prática de fraudes.

A criação de condições institucionais e processuais para ampliar o risco de fraude é grave, muito grave. Que se centrem todos os poderes decisórios é a negação da transparência e do funcionamento democrático.

Um aumento deliberado e exponencial do risco de fraude implica fraude? Talvez sim, talvez não. Só uma auditoria de outro tipo e com objectivos forenses será capaz de responder às dúvidas. Da nossa parte estamos empenhados para colaborar numa tal pesquisa! E o leitor?