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Não é possível abordar o problema da desigualdade sem falar do aumento brutal do nível das remunerações dos administradores das grandes empresas

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Nos últimos anos, o tema da desigualdade na distribuição da riqueza e dos rendimentos tornou-se bastante popular. A aceitação de livros recentes sobre ele, de autores tão reputados como Branko Milanovic, Joseph Stiglitz ou Thomas Piketty, prova à saciedade a preocupação generalizada e a atenção que tem atraído. Por exemplo, relativamente ao livro de Thomas Piketty, “O Capital no Século XXI”, sabe-se que a tradução inglesa se tornou o livro mais vendido na Amazon. De facto, esta tradução do livro de Piketty foi publicada em Março de 2014 e chegou logo, em Abril e Maio do mesmo ano, a número um na lista de livros mais vendidos (incluindo ficção) da Amazon. De notar que este especialista em desigualdade foi convidado para efetuar uma conferência no Grande Auditório da Gulbenkian sobre o seu livro, no dia 27 de abril, o que é revelador do interesse sobre o tema que também em Portugal se faz sentir.

Apesar de não ser totalmente consensual, a ideia de que os níveis atuais de desigualdade são preocupantes é amplamente partilhada, o que não é de estranhar tendo em conta os dados que se conhecem sobre o assunto. Basta analisar um recente relatório sobre a riqueza mundial da insuspeita empresa Credit Suisse, o Credit Suisse Global Wealth Report 2014, no qual se dá conta de que a metade menos rica da população global possui menos do que 1% da riqueza total, sendo que, em contraste, 87% de tal riqueza é possuída por quem compõe os 10% mais ricos.

Não é possível abordar o problema da desigualdade sem mencionar o fenómeno do aumento brutal do nível das remunerações dos administradores das grandes empresas que ocorreu ao longo das últimas décadas, o qual fomentou um debate intenso sobre a comparação entre as remunerações dos executivos e as remunerações dos restantes trabalhadores. Este tema tornou-se extremamente popular.

Estimativas recentes sobre a disparidade entre as remunerações dos CEO e as remunerações dos restantes trabalhadores no caso das grandes empresas permitem comparar a realidade de diferentes países [1]: nos EUA, os CEO ganham 354 vezes mais; no Canadá, 206; na Alemanha, 147; na França, 104; na Suécia, 89; no Japão, 67; em Portugal, 53; na Dinamarca, 48; na Áustria, 36; na Polónia, 28.

Muitos são aqueles que se encontram perturbados pelo que consideram ser níveis excessivos de remuneração dos executivos. Alguns deles sugerem que estes níveis elevados de remuneração surgem em prejuízo dos acionistas, que consideram como proprietários da empresa, e podem até criar incentivos para que os executivos tomem riscos excessivos. Outros discutem se os pacotes de compensação dos executivos nas empresas do setor financeiro poderão ter contribuído para a mais recente crise financeira. Outros ainda analisam a remuneração dos executivos contra o pano de fundo do excessivo nível de desigualdade existente.

Muitas organizações pelo mundo fora criticam abertamente as práticas de remuneração dos executivos e envolvem-se no combate a tais práticas. Por exemplo, nos EUA várias organizações têm sido muito veementes nas suas críticas às práticas de compensação dos executivos. Na primeira linha desta crítica estão organizações laborais, como a American Federation of Labor-Congress of Industrial Organizations (AFL-CIO), e organizações relacionadas com a ética empresarial e a responsabilidade social das empresas, como o Interfaith Center on Corporate Responsibility (ICCR). Estas organizações conceberam mecanismos para ajudar na restrição dos excessivos pacotes de compensação dos executivos: a AFL-CIO criou a PayWatch Webpage (www.PayWatch.org); o ICCR é conhecido por ter interposto resoluções de acionistas contestando os pacotes de compensação dos executivos em empresas com ações admitidas a cotação em bolsas de valores.

O nível de desconforto entre políticos não é menor. Um dos acontecimentos mais dignos de nota sobre o debate a propósito das compensações dos executivos foi o referendo ocorrido em Março de 2013 na Suíça para controlar a remuneração dos acionistas. Neste referendo, 68% dos votantes expressaram-se de forma favorável a uma lei impondo limites estritos à compensação dos executivos. Não obstante, numa votação subsequente, ocorrida em novembro do mesmo ano, pouco mais do que 65% dos votantes suíços rejeitaram uma proposta concreta de o salário mais elevado não ultrapassar em 12 vezes o valor do salário mais baixo. Mais recentemente, em Junho de 2014, nos EUA, o senado estadual de Rhode Island aprovou legislação oferecendo uma preferência nas compras do Estado a empresas cujos CEO não aufiram remunerações que excedam mais do que 32 vezes a remuneração do seu empregado pior pago.

Alguns dos mais reputados estudiosos da gestão ofereceram perspetivas críticas interessantes sobre o assunto da remuneração dos executivos. Peter Drucker foi um dos que mais cedo, em 1977, e de forma mais veemente levantou preocupações sobre a existência de elevadas disparidades entre as remunerações dos executivos e as dos demais trabalhadores. Este autor considerou que um rácio entre a remuneração do CEO e a remuneração dos demais trabalhadores de 25:1 estaria dentro do âmbito do que a maioria das pessoas nos EUA considerava apropriado e até desejável na altura. Mais ainda, Drucker considerou como uma “responsabilidade empresarial” o desenvolvimento de uma estrutura de compensação dos executivos “sensata”. Sete anos mais tarde, Drucker reiterou esta opinião, afirmando que a compensação de um pequeno grupo no topo de um número minúsculo de empresas gigantes ofenderia o sentido de justiça de muitas, talvez até a maioria, das próprias pessoas que se movem na área da gestão, e sugerindo um rácio de 20:1.

Mais recentemente, em 2009, e de forma mais radical, Henry Mintzberg afirmou que os bónus dos executivos “representam a forma mais proeminente de corrupção legal que tem minado as nossas grandes empresas e prejudicado a economia global” [2]. Para Mintzberg, muitos dos executivos têm-se comportado mais como jogadores, participantes em jogos cujas regras se encontram viciadas a seu favor, do que como líderes, aquilo que eles gostam de pensar que são.

Não obstante, parece que os próprios executivos começaram a preocupar-se com o tema da desigualdade. Tem sido amplamente divulgada a notícia de que Dan Price, fundador e CEO da empresa norte-americana de tecnologia de processamento de cartões de crédito Gravity Payments, decidiu reduzir a sua remuneração em 90% para que todos os trabalhadores da empresa que lidera possam receber um salário anual de pelo menos 70 000 dólares. Pouco tempo antes, tinha sido Mark Bertolini, presidente do conselho de administração e CEO da seguradora Aetna, a decidir aumentar os salários a milhares dos trabalhadores da empresa. Alegadamente, esta decisão terá sido consequência da leitura do livro de Piketty referido atrás, tendo Bertolini chegado a aconselhar os executivos da Aetna a ler esse livro. Parece, todavia, tratar-se de casos isolados, como se depreende da evolução dos dados sobre as disparidades entre os salários dos CEO e os salários dos restantes trabalhadores, que têm vindo a ser produzidos pela AFL-CIO e divulgados na sua página web (www.aflcio.org).

 

NOTAS:
[1] http://www.aflcio.org/Corporate-Watch/Paywatch-Archive/CEO-Pay-and-You/CEO-to-Worker-Pay-Gap-in-the-United-States/Pay-Gaps-in-the-World
[2] Mintzberg, H. (2009), “No More Executive Bonuses!”, Wall Street Journal, November 30, http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052748703294004574511223494536570