Henrique Santos, Visão on line,

“...já te disse várias vezes que tínhamos de investir na educação, na formação e na ética...

...

Olá Pedro,

Como estás? Há muito que não trocamos impressões. Nós estamos bem, espero que contigo e toda a tua família também esteja tudo a correr pelo melhor.

Não me vês há muito, mas eu, todos os dias te vejo ou ouço falar sobre ti.

Nunca deste muitos ouvidos ao que eu te dizia, e de certo irás fazer o mesmo agora, mas não podia deixar de te escrever.

Cá na terra, como bem sabes, quem não se sente não é filho de boa gente! Existem muitas decisões que tomaste com as quais eu não concordo, mas estou certo que as deves ter tomado com muito boas intenções e com a tua consciência tranquila, afinal foi essa a educação que te deram e, a juntar à formação que tiveste, te tornaram naquilo que és. É precisamente nesta questão da educação, da formação e da ética que me dirijo a ti.

Não te enviei um e-mail, porque a secretária do teu chefe de gabinete não me conhece, e de certo ia responder-me com um simpático e-mail de agradecimento. Eu sei que, quando vires uma carta com o carimbo dos correios cá da terra vais ficar emocionado (do concelho, porque aqui a estação de correios dos CTT já fechou, não sei se sabias, a D.ª Alzira anda num pranto,...), e então quando vires que sou eu o remetente, vais ficar ainda mais feliz.

Bem, mas retomando o assunto, soube que há uns dias atrás contrataste mais uns mil inspetores de finanças. Sim senhor, quando fazes as coisas é à grande! Mas sabes, essa malta em breve vai ter de voltar para a mobilidade (ahahah), pois cá por cima as empresas estão todas a fechar, o quê que vão fiscalizar, as massas falidas? Bem sei que isso foi uma contratação interna (de malta que já trabalhava para o estado, dizem os jornais), mas caramba, já te disse várias vezes que tínhamos de investir na educação, na formação e na ética nos diversos níveis de ensino, no setor da fraude, justamente aquela que pretendes combater com estes novos inspetores.

Fizeste lá o e-fatura, e fizeste bem, estamos de acordo, mas agora estes mil inspetores são para quê? Tantos?! Eu nem tempo tenho de conhecer uma lei e já estou a ser multado, ou coimado, ou lá com vocês chamam a isso. Até parece de propósito, só descobrimos a lei quando o inspetor nos bate à porta.

Pensa lá, todos os meses vais precisar de, no mínimo, 1.500.000,00 € (um milhão e quinhentos mil euros) para pagar a essa malta, que, por ano, dá mais de 20.000.000,00 € (vinte milhões de euros). Não podias mandar alguma dessa malta ministrar formação na área da fraude, para termos cidadãos de futuro, que valorizem os bens do estado, que não tenham a noção que os bens públicos são de borla, que conheçam o valor da honestidade e por aí fora? Parece que fazes de propósito, arranjar mais inspetores para que as pessoas se sintam revoltadas, fazes sentir que somos todos uma cambada de ladrões e prevaricadores. Até a mim me incomodou, e sabes que eu nem sou dessas coisas.

Eu sei que a economia paralela é elevada, mais elevada que aquela que o teu INE (Instituto Nacional de Estatística) diz, mas o e-fatura não está tão jeitosinho para já?

Não te minto, até estou meio revoltado. Oh pá, a malta por aqui não tem médicos, não tem grandes hospitais, tem até poucos serviços públicos (até compreendo, sei que não é fácil), e pronto, somos de Trás-os-Montes e como tens afinidades por cá, não nos queres privilegiar para não te acusarem de favorecimento, mas sabes, a probabilidade de eu encontrar um inspetor de finanças no Centro de Saúde (como doente), é bem maior que um médico (se não é, não falta muito).

Deves estar a rir-te todo pimpão, pois sabes que não vou encontrar nenhum inspetor (como doente no Centro de Saúde), eu sei que tens razão, eles não vão lá, têm um sistema de saúde próprio... Já te estou a ver à lareira a responderes, com os pés no banco de madeira (a fazer de púlpito), como fazias quando éramos crianças e a convenceres-me das tuas ideias e decisões. E bem sabes como me davas a volta...

Mas, olha lá Pedro, não podias desviar (salvo seja) uns 10% do valor que vais dar à inspeção para a formação das pessoas no combate à iliteracia financeira, às boas práticas e procedimentos éticos, à responsabilização, aos sentimentos de pertença ao bem público, e por aí fora? Tudo sentimentos que levarão a termos pessoas que serão elas as suas próprias inspetoras.

Eu sei, isso demora, tem de se começar de pequenino e os frutos só aprecem daqui a 20 anos (faz lembrar o que aconteceu com a separação dos lixos, demorou não foi?), e isso não ajuda nos votos. Eu sei, mas tu também sabes os sonhos que tinhas quando éramos novos, que os outros hipotecaram por pensarem e terem feito da mesma forma. É por isso que estamos assim.

Eu fui-te falando disso ao longo do tempo, mas nunca to tinha dito diretamente, da importância da ética, da formação das pessoas na área financeira para perceberam as coisas, para não cometerem erros ou apoiar más decisões e por aí fora. Oh Pedro, eu sei que és da área da economia, que percebes o que estou a dizer, anda lá, pelo menos pede ao Crato para colocar um capítulo de uma disciplina dedicado ao tema, de forma obrigatória em todos os níveis de ensino. Sei que andas a apostar na formação de igualdade de género e por aí fora (e bem), não será também importante pensares, com bom senso, neste problema que pode ser solucionado de forma eficaz.

Enquanto se achar normal um funcionário público receber uma garrafita de vinho, como forma de agradecimento por ter feito um serviço que lhe competia e é pago para isso, não vamos lá. Aliás, mandaste fazer para aí uma espécie de guia de boas práticas, para saber o que um funcionário podia ou não receber de um utente, e que devia declarar quem foi e essas coisas... Eu achava era que simplesmente o funcionário devia recusar o que quer que fosse, e enquanto a “educação/formação” não estiver nesse nível, também não vamos lá.

Já escrevi demais, mas também é a primeira vez que o faço, nunca te tinha escrito desde que estás nessas funções.

E agora, que já disse o que tinha a dizer, não te esqueças de vir cá cima comer um arrozinho de favas com moira. Este ano o nosso tinto ficou um espetáculo (não te mando nenhuma garrafa para te obrigar a vir cá). Não te aflijas, ninguém vai pensar que te estou a “comprar” (se é que me entendes), nós já somos amigos de infância! (se o outro lê-se isto,...).

Oh, nem me lembrava de te contar... a Matilde já anda e os miúdos disseram que este ano são eles que vão tratar dos pintainhos do galinheiro, a Esmeralda é que não anda muito convencida.

Dá cá uma saltada, vais daqui renovado. Mas traz a samarra, que para aqui está tudo cheio de neve!

Olha que isto é uma carta nossa, escrita à transmontado, não a leves para o gabinete!

Bem, não te demoro mais, dá novidades, mando-te aquele abraço. A Esmeralda e os miúdos estão mortinhos por vos ver.

(Assinatura ilegível)