António José Moreira, Jornal i

O murro era dado por alguém em quem confiava, por membros de uma turma com quem tinha uma relação que considerava exemplar

 

No término de cada aula o professor é o ator no final do espetáculo. A adrenalina dá lugar ao cansaço, lentamente, como se por vasos comunicantes se permutassem. É a altura de um primeiro balanço, colocando nos pratos da balança os pontos positivos e negativos da sessão, avaliando o que poderia ter sido e não foi, o que aconteceu e não era suposto ter acontecido. Tendo por companhia as bancadas do anfiteatro, agora vazio e silencioso, sobrevém uma sensação de solidão, agravada em fim do dia quando o corpo acusa de forma mais profunda o acumular das horas de lecionação decorridas.

Mais um dia que terminava. À secretária, preencheu o sumário da sessão, arrumou os materiais na pasta, um pouco ao acaso. Era como se a mente impusesse esse pequeno desleixo, procurando abreviar o retorno ao lar e ao descanso. As folhas de presença, com as assinaturas dos alunos pós-graduandos, ficaram para o fim. O habitual, quase como se o apor-lhes a rubrica fosse o ponto final que deixava cair o pano sobre a tarefa.

Podia ter sido mais um terminar em “modo automático”, mas não foi. Um olhar, a sensação de que os espaços em branco nas folhas, as ausências, não encaixavam com a contagem das presenças que fizera, mentalmente, a meio da aula. Sobrava uma assinatura. Contou e voltou a contar, o ritmo cardíaco aumentando à medida que os indícios de ter sido enganado eram cada vez mais fortes. Consultou as fotografias dos alunos, olhou as assinaturas, voltou a contar. Não foi difícil reconstituir a situação, incluindo a presença que assinara pela presença que não acontecera.

Doía-lhe ser enganado. Mais ainda quando o “murro” era dado por alguém em quem confiava, por membros de uma turma com quem tinha uma relação que considerava exemplar. O auditório vazio ainda se tornou mais insuportável, aumentando o desconforto da situação. As folhas de presença na mão, o olhar perdido algures na parede branca do fundo da sala, os pensamentos a aparecerem e desaparecerem como pisca-piscas no meio do nevoeiro. Acima de tudo, a sensação de frustração pelo comportamento não ético dos seus alunos, por ironia pertencentes a um curso que tinha no seu plano curricular um módulo de “Ética na profissão”.

A frustração deu lugar à ação. Convocou de urgência os intervenientes diretos no caso. A assunção da responsabilidade, por ambos. A explicação, mais tarde corroborada por fonte externa: o ausente da aula, funcionário do ex-BES, tinha deixado de poder controlar o horário de saída do emprego, na corrida contra o tempo em que se transformou o evitar a perda de clientes e a tentativa de recuperar os que entretanto haviam debandado; o colega presente, que lhe cedera a assinatura, cometera a irregularidade por medo que mais uma ausência pudesse levar o colega a reprovar à unidade letiva. Concordaram com a penalização a ambos imposta, formularam promessa de que futuras situações do género seriam colocadas ao docente para procura conjunta de soluções.

Saíram, cabisbaixos. Para trás deixaram ficar naquele a desagradável sensação de que, lá no fundo, eles não haviam percebido que o respetivo comportamento tem um nome feio. A pressão originada por ondas de choque do “caso BES”, e a aplicação prática da relação de amizade e camaradagem existente, podiam ser olhadas como atenuantes para o que fizeram, mas não retiravam ao ocorrido aquilo que ele era: uma fraude.