Óscar Afonso, Jornal i

O Papa Francisco não fala de uma revisão completa da economia, denuncia a dominação das regras do mercado, do capitalismo sem controle, sobre os seres humanos

 

O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, analisa a economia global e, sem ter a pretensão de discutir teorias económicas, aborda, como questão central, a necessidade da Economia assentar na dignidade da pessoa humana.

O Papa Francisco faz uma análise contemporânea, afirmando que o capitalismo deixado à sua própria sorte, sem autorreferencial, é um sistema que se move em função dos seus propósitos. Quando fala do amor pelo dinheiro, revela que essa é, por excelência, a forma de existência do capitalismo selvagem, que expurga a igualdade, a solidariedade, a liberdade, a fraternidade e o amor ao próximo. Valores que foram sendo dissolvidos pelo espírito competitivo dos mercados e pela consequente valorização excessiva do dinheiro e do consumismo.

Como sabemos, a Economia é a ciência social que estuda a forma como as sociedades utilizam recursos escassos para produzir bens e serviços com valor e como os distribuem pelos vários indivíduos. Tendo em conta, por um lado, a escassez de recursos e, assim, de bens e serviços e, por outro lado, as necessidades ilimitadas, há que fazer escolhas, operando com eficiência. Nesse processo, nas economias ocidentais, o mercado resolve as três questões essenciais, através do funcionamento do mecanismo de determinação de preços. O que produzir é determinado pelos ‘votos monetários’ dos consumidores, já que na prossecução do lucro as empresas vão produzir os bens e serviços cuja receita supera os custos. Como produzir é determinado pela concorrência entre os produtores, que, para obterem lucros, recorrem aos métodos de produção mais eficientes. Para quem produzir depende, desde logo, do poder aquisitivo da população.

Usando as palavras do Papa Francisco, para que a Economia seja “a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro”, e porque “a dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica”, e como para tal a mão invisível do mercado não chega, o Estado deve promover a eficiência, fomentando a concorrência, refreando tentativas de abuso de posição dominante, combatendo as externalidades negativas e fornecendo bens públicos. Além disso, porque mesmo maximizando eficiência a equidade não fica garantida, o Estado deve também redistribuir o rendimento entre grupos particulares, através de impostos, subsídios e transferências.

Porém, sobretudo depois dos anos 80, assistiu-se à libertação dos mercados das peias programadoras, reguladoras e disciplinadoras dos Estados, de modo que a dominação do mercado conduziu à hegemonia dos bancos, da bolsa, da livre circulação do capital, enfim da financeirização desligada da produção e que transformou a apropriação de rendimentos, sem os produzir, numa das formas dominantes de enriquecimento de alguns. Recorde-se que a expansão do capital fictício, apoiado pelos Estados (como o demonstram os “paraísos fiscais”) tem dado lugar, por exemplo, aos produtos financeiros tóxicos e à expansão da Economia Paralela. Quem formula políticas foi erradamente considerando que os mercados organizavam eficazmente toda a esfera económica e a sociedade humana transformou-se numa “sociedade de mercado”.

Neste contexto e como o Papa Francisco sustenta, as desigualdades sociais são o maior desafio económico do nosso tempo, “a raiz dos males sociais”, não apenas para os pobres, mas para todo o mundo. Não se trata de rejeitar o mercado, o dinheiro ou o lucro, trata-se de denunciar a dominação do mercado sobre o ser humano, a obtenção de dinheiro e lucro sem ética e de rejeitar que a exploração esteja no centro do lucro.

O Papa Francisco não fala de uma revisão completa da economia, de uma revolução, mas denuncia a dominação das regras do mercado, do capitalismo sem controle, sobre os seres humanos. E, nesse sentido, remete para a ideia de que o ponto de inflexão tem a ver com a relação entre o mercado e a sociedade, e prossegue dizendo “peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo” porque “o crescimento equitativo [...] requer decisões, programas, mecanismos e processos [...] orientados para uma melhor distribuição dos rendimentos, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo”. “Se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos [...] de um modo mais eficiente de interacção que [...] assegure o bem-estar económico a todos [...]” e que coloque o ser humano no centro da actividade económica.