Manuel Castelo Branco, Visão on line,

Portugal parece ter sido um dos poucos países em que se apostou na flexibilização dos mercados de trabalho como forma de aumentar a sua competitividade a nível internacional.
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O Fórum Económico Mundial publica anualmente um relatório sobre a competitividade relativa de um grande número de países onde oferece uma espécie de “ranking mundial de competitividade”. Trata-se do bem conhecido Global Competitiveness Report. Este relatório foi recentemente objeto de notícia nos meios de comunicação social, nomeadamente pelo facto de Portugal ter subido, do ranking de 2013-14 para o ranking de 2014-15, 15 lugares (passou do 51.º lugar para o 36.º). A sua pontuação global aumentou de 4,40 para 4,54.

Para a ampla divulgação desta notícia terá contribuído substancialmente o facto do nosso ministro da economia, António Pires de Lima, se ter referido a esta evolução. De acordo com as notícias publicadas, Pires de Lima terá sublinhado os factos de Portugal se ter colado a países como a Espanha, ter ultrapassado a República Checa, a Polónia ou a Itália, e se ter distanciado da Grécia. Terá enfatizado que, a par da Roménia, fomos o país da União Europeia que registou maiores progressos. Poderia ter ainda mencionado o Bahrein, Oman ou o Panamá, países cuja pontuação se reduziu e foram também ultrapassados por Portugal.

No relatório em causa, sublinha-se a subida de Portugal e afirma-se que “o ambicioso programa de reforma que o país adotou parece ter começado a dar frutos”. Além disso, reconhece-se que as principais áreas em que isso parece ter acontecido são as relativas ao funcionamento dos mercados, salientando-se a posição que Portugal ocupa em termos do número de dias necessários para constituir uma empresa e a evolução na flexibilidade do mercado laboral.

Apesar de Portugal continuar a não aparecer em lugares de destaque ao nível da flexibilidade do mercado laboral, foi aqui que parece ter havido maior evolução relativa, pelo menos face aos países de que Portugal se aproximou ou ultrapassou. Relativamente a este aspeto, o nosso país passou de 126.º, no ranking de 2013-14, para 83.º, no de 2014-15, tendo a pontuação respetiva subido de 3,8 para 4,1. De facto, aproximou-se da República Checa, que viu a sua pontuação aumentar, igualou a pontuação da Polónia (cuja pontuação diminuiu), ultrapassou a Espanha (cuja pontuação se manteve) e distanciou-se da Itália (cuja pontuação diminuiu). Destes países, apenas a Espanha viu a sua pontuação global diminuir. Quanto aos outros países, a pontuação global da República Checa aumentou e as pontuações da Itália e da Polónia mantiveram-se.

Quanto à Grécia, viu a sua pontuação global aumentar e a pontuação relativa à flexibilidade do mercado laboral reduzir-se. Já a Roménia, o outro país europeu destacado por Pires de Lima, viu a sua pontuação global aumentar e a pontuação relativa à flexibilidade do mercado laboral manter-se. As grandes melhorias ocorridas na Roménia parece terem ocorrido ao nível da qualidade das instituições, do ensino superior, das infraestruturas e da eficiência do mercado de produtos. Talvez relativamente a este país se possa falar de uma verdadeira reforma. Dos outros países referidos acima, apenas o Bahrein parece ter mantido as suas pontuações global e relativa ao mercado laboral. O Panamá e o Oman viram ambos os tipos de pontuação reduzirem-se.

Portugal parece ter sido um dos poucos países em que apostou na flexibilização do mercado de trabalho como forma de aumentar a sua competitividade a nível internacional. Num período em que as populações atravessam grandes dificuldades económicas, não foram muitos os governos que se atreveram a levar a cabo estratégias tão ambiciosas de flexibilização desse mercado.

Não se pode deixar de mencionar que o que essencialmente explica a posição que Portugal tem vindo a ocupar é a qualidade relativa das infraestruturas (17.º lugar), da saúde e educação básica (24.º lugar), educação superior e formação profissional (24.º lugar). Para além destes aspetos, salientam-se outros dois claramente relacionados com a qualidade da educação e formação profissional: a prontidão tecnológica (27.º lugar) e a inovação (28.º lugar). Não será descabido afirmar-se que, num futuro breve, muita da qualidade ainda existente ao nível da saúde e da educação e formação se perderá. Será que a posição de Portugal no ranking de competitividade se manterá nessa altura?

Chegado a este ponto no texto, o leitor impacienta-se. Talvez comece a irritar-se. O que tem isto a ver com “fraude inocente”? O título desta crónica inspira-se num livro escrito em 2004 por John Kenneth Galbraith, economista norte-americano já falecido, no qual tratava aquilo a que chamou precisamente “fraude inocente”, cometida também por certo tipo de economistas, os mais influentes desde há algumas décadas. Trata-se de “fraude” porque envolve a prestação de um serviço a interesses particulares e é “inocente” porque é perpetrada por esses economistas sem que disso se apercebam, ou pelo menos sem que o reconheçam, e sem que se sintam responsáveis ou culpados. As visões do mundo por eles defendidas e ensinadas não estão deliberadamente ao serviço dos interesses económicos, sociais e políticos mais importantes, os “dos mais ricos, dos mais bem relacionados e dos politicamente mais proeminentes” (hoje em dia, poder-se-ia falar “dos 1%”), mas servem-lhes de base de sustentação. Tais visões prevalecem em grande medida porque são aquelas que servem tais interesses.

Para o autor desta crónica, é uma “fraude inocente” que está em causa quando se defende a flexibilização do mercado de trabalho como forma de promover a competitividade e impulsionar o crescimento económico. Como tem vindo a defender nos seus escritos um dos mais interessantes economistas atuais, Ha-Joon Chang, tal como praticada nas últimas três décadas, a ciência económica predominante, a dos economistas defensores do mercado livre, pior do que irrelevante, tem sido claramente prejudicial para a maior parte das pessoas. Talvez em nenhuma outra área como a dos mercados laborais isso seja tão evidente. Deixar-se o destino das pessoas (é disso que se trata) à mercê do funcionamento de um mercado de trabalho flexível parece muito perigoso.

Convém nesta altura salientar que o ranking mundial de competitividade e o relatório de competitividade mundial utilizados nesta crónica são de responsabilidade de uma organização, o Fórum Económico Mundial, olhada por muitos com bastante desconfiança, dada a sua ligação ao movimento do neoliberalismo. Poderia até ser descrita como centro de propagação e imposição de uma espécie de “fundamentalismo do mercado livre”.

Há que romper com o economicismo dos peritos que proferem discursos sobre como resolver os problemas sociais socorrendo-se de teorias cuja validade está limitada pela verificação de pressupostos muito específicos que são convenientemente deixados enterrados nas obras da especialidade. A resolução de tais problemas passa, antes do mais, pela vontade política, por opções, e propor soluções com base em argumentos de autoridade científica é, o mais das vezes, um logro.