José António Moreira, Jornal i
O Marco nunca teve uma vida fácil. Também nunca fez muito por isso. Por inércia, por débil saúde, por falta de sorte, foi deixando que a vida lhe passasse ao lado. Retirou-se do mercado de trabalho quase na flor da idade, sem reforma que lhe permitisse sustentar a família. Os ‘biscates’ que aqui e ali fazia não tapavam os estruturais buracos orçamentais. Um ‘crédito por telefone’ com condições ruinosas, dívidas a diferentes familiares, uma no cartão de crédito, um descoberto na conta de depósitos …
O Marco tomou consciência do imbróglio em que se metera quando a primeira dessas dívidas foi judicialmente reclamada e uma penhora visou os parcos haveres familiares. Foi um choque para a família, incluindo a esposa, pela situação e, de modo particular, pelo elevado montante que a dívida agregada (somatório das diversas e dispersas dívidas) atingira. Até ele ficou surpreso por dever tanto dinheiro.
Lembrei-me recentemente deste caso quando os ‘media’ fizeram notícia do aumento da dívida pública portuguesa, por via da aplicação de novas regras contabilísticas que impuseram a inclusão de centenas de empresas e organismos públicos no perímetro de entidades considerado para cômputo daquela dívida. A surpresa foi enorme, dada a grandeza dos ajustamentos, não porque o Estado tenha ficado mais endividado do que estava, mas porque, de repente, se tornou visível para todos uma fotografia que, não sendo ainda a real (muitos outros organismos e responsabilidades continuam fora desse perímetro), retrata um pouco melhor os tons negros associados ao estado a que o Estado chegou.
Tal como o Marco, o que os sucessivos governos fizeram, sem exceção, foi ir gastando ao mesmo tempo que procuravam que isso não fosse visível nas estatísticas. Com tal propósito, numa estratégia de ocultação, criavam novas entidades para “parquearem” dívida e responsabilidades. Procedimento que não era original, muito usado por empresas que se tornaram notícia por via do “estrondo” das respetivas falências. O caso da americana ENRON, a maior falência de sempre, ocorrida em 2001, é um exemplo desse tipo de atuação fraudulenta. No caso dos políticos que nos governaram, havia um forte incentivo para tal comportamento: não havia responsabilização criminal, como no caso das empresas; quando no futuro as dívidas e responsabilidades subjacentes se tornassem exigíveis eles já não ocupariam os lugares, outros teriam de as pagar.
Muito se tem falado da reforma do Estado e da necessidade de assegurar a transparência das administrações públicas. Com pequenas exceções, tudo não tem passado das palavras. No entanto, há uma pequena reforma de natureza contabilístico-financeira, sem custos relevantes, que poderia arejar a vida pública e evitar, para futuro, situações de endividamento como as que os últimos anos nos trouxeram e que quase levaram o país à bancarrota: o cálculo anual obrigatório da dívida agregada do Estado e do respetivo défice agregado (incluindo todos as organismos e entidades, mesmo as que as regras contabilísticas não consideram para efeitos estatísticos), onde deveriam ser também incluídas as responsabilidades futuras assumidas (com PPP, por exemplo).
Se outro mérito não tivesse, a reforma permitiria aos cidadãos uma mais rigorosa avaliação do desempenho dos governantes e edis, por via do confronto entre a “obra visível” efetuada e o que isso custou em termos de dívida e défice (incluindo a parte “invisível”).
Que melhor sinal de transparência poderiam os governantes e edis oferecer que a instalação de gigantescos placards em praças e rotundas mostrando a evolução da dívida e défice das áreas que tutelam?