José António Moreira, Jornal i,
“Não era uma experiência muito recorrente. Mas sempre que acontecia era desagradável. Desta vez não foi diferente. A convocatória da Administração Tributária (AT) deixara-o nervoso. Pelo caminho ia pensando na razão para ser chamado à repartição de finanças. Na sua atual situação de desempregado, em vias de terminar de receber o subsídio de desemprego, não conseguia descortinar qual poderia ser essa razão. Tentou não pensar no assunto, estugando o passo a caminho da repartição. Quando aí chegou recolheu a senha de atendimento e aguardou. Chamaram o seu número, avançou.
- Recebi esta convocatória … – e entregou a folha vincada ao funcionário que o atendia.
- Um momento. Vou buscar o processo.
Os minutos passaram, lentos, o funcionário não voltava.
- Desculpe a demora, mas são tantos os processos … – e olhou para as folhas dentro da capa. – Necessitamos que justifique uma verba que foi transferida para a sua conta bancária no ano passado, no montante de 2000 euros e que não consta da sua declaração anual de rendimentos.
– Uma verba … em Outubro? – perguntou, enquanto organizava as ideias, pois as verbas na sua conta não eram assim tantas que as pudesse esquecer. – Foi uma ajuda que recebi da minha irmã, que é madrinha do meu rapaz, para ajudar a pagar as suas propinas e despesas do estudo. Como deve constar aí do processo, estou desempregado há já uns tempos e estava na eminência de ter de tirar o rapaz da Faculdade por incapacidade de pagar as propinas.
– Muito bem – disse o funcionário, enquanto pesquisava no terminal. – Acontece que não declarou essa doação através do “Modelo 1 - Imposto selo”, para participação de transmissão gratuita.
– Declaração desse montante? Porquê, se é uma ajuda recebida de um familiar?
– Não se tratando de uma doação entre ascendentes ou descendentes ou em favor do cônjuge ou do unido de facto e sendo superior a 500 euros, tem de ser declarada por quem a recebe e é passível de tributação em Imposto de Selo à taxa de dez por cento. Como não a declarou em devido tempo, irá ter que pagar juros compensatórios e uma coima que poderá variar entre o valor da prestação em falta e o seu dobro.
– Mas o facto de eu estar desempregado, de isso ser uma ajuda de um familiar para me ajudar a sobreviver neste período mau …
– Podem ser atenuantes na definição do montante da coima – disse o funcionário, algo abruptamente, dando por terminado o encontro.
Deu consigo na rua, sem saber bem para onde ia. Nem lhe ocorrera perguntar como tinha a AT sabido que recebera aquele montante. Sentia uma revolta interior tão grande, tão grande, que faria explodir o mundo naquele momento se tivesse condições para tal.”
Trata-se de uma situação ficcionada. Porém, acredito que a sua ocorrência seria muito frequente se a AT tivesse (ainda maior) possibilidade de vasculhar as contas de cada cidadão. Em tempos de dificuldades como os que se vivem, com o desemprego e o corte nos rendimentos a afetarem todas as famílias, não é de estranhar que, sobretudo no interior destas, as pessoas se entreajudem.
As dificuldades financeiras do Estado levam-no à redução das prestações sociais, provocando o incremento desses fluxos de solidariedade. Qual predador atento, tributa-os, abocanhando uma parte. Um paradoxo.
Sou contra a fraude fiscal. Mas há situações particulares, como a ficcionada, em que me interrogo se ela não será moralmente justificada.