António João Maia, Visão on line,

No próximo dia 9 dezembro assinala-se o dia mundial contra a corrupção. Nesse dia, em 2003, na cidade mexicana de Mérida, Portugal assinava, conjuntamente com os principais países do mundo, a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/58/4).

Através desse documento, os Estados subscritores (que são actualmente mais de 150) reconheciam que a corrupção é um problema transversal a todos os países, que representa uma ameaça séria à segurança e à coesão das sociedades, na medida em que se constitui num fator que mina a confiança das pessoas, das instituições, dos valores da ética e da moral e da própria democracia.

Uma das questões que se tem suscitado relativamente à problemática da corrupção e de grande parte da denominada criminalidade económica e financeira prende-se precisamente com a vertente da existência de vítimas e de processos de vitimização. Se é fácil identificar as vítimas de um roubo ou de um assalto a uma residência, o mesmo não sucede relativamente à corrupção. Há até alguns autores que, baseados nesta perspectiva de não ser possível individualizar alguém em concreto como sendo vítima destes atos, tendem a caracterizar estes ilícitos como crimes sem vítima.

A verdade porém é que em bom rigor não se pode considerar a existência de crimes que não produzam vítimas. Em última instância, a sociedade no seu todo é sempre vítima de qualquer crime, na medida em que ocorrência de qualquer ato desconforme com as expectativas sociais (o crime é sempre um ato de desconformidade relativamente às normas estabelecidas) significa um falhanço de alguma das vertentes da estrutura de coesão social. No caso da corrupção, a vítima é a sociedade no seu todo, designadamente o fator confiança, que deve nortear as relações entre as pessoas e que é tão determinante para a manutenção das expectativas sociais. A sociedade só funciona na medida em que as pessoas confiem umas nas outras. Por esta razão se costuma dizer que a corrupção mina os alicerces da sociedade, como aliás foi reconhecido pelo conjunto de países que ratificaram a Convenção Contra a Corrupção das Nações Unidas.

Mas vejamos através de alguns exemplos muito simples como e com que efeitos é que a corrupção provoca as suas vítimas:

Suponhamos que o valor normal para a construção de um Hospital é de X. Se o processo administrativo inerente à sua construção incluir o fator corrupção, significará que o valor que a sociedade terá realmente de pagar pela sua construção será de X+(Y+Z), em que Y corresponde ao custo do ato corrupto e Z a um valor que a entidade construtora do Hospital entenda acrescentar ao montante realmente necessário para a sua construção (o valor X), uma vez que a troca corrupta lhe deu a garantia prévia de execução dos trabalhos independentemente do valor apresentado a concurso. Através desta fórmula, a entidade construtura incrementa os seus lucros associados à construção do Hospital.

De acordo com este simples exemplo, o esforço dos cidadãos para custear esta construção torna-se superior relativamente ao valor que seria efetivamente necessário se o processo não incluísse o fator corrupção. Ora como este esforço resulta sempre dos impostos que são suportados pelos cidadãos, suscitam-se duas alternativas: ou se exige um esforço suplementar de modo a conseguir as verbas necessárias para executar todas as infraestruturas prevista no programa do governo ou, mantendo o mesmo esforço, algumas dessas infraestruturas não poderão ser executadas.

Por outro, há ainda a possibilidade de existência de um terceiro efeito em resultado do mesmo ato corrupto e que podemos traduzir da seguinte forma: como a construtora tem a garantia prévia – proporcionada pela transacção corrupta – da construção do Hospital, decide edificá-lo com materiais de valor e qualidade inferiores aos que propusera no projeto, incrementando desta forma ainda mais as suas margens de lucro. Porém, ao construir o Hospital com materiais de menor qualidade, está muito provavelmente a contribuir para que ele venha a necessitar mais rapidamente de obras de conservação e restauro. Desta forma contribui diretamente para a antecipação da necessidade de novos esforços financeiros aos mesmos cidadãos, cujos impostos serão, por este efeito, antecipadamente utilizados para custear essas obras.

Em suma, através deste pequeno exemplo gizado assim em poucos traços, verificamos que a corrupção se pode traduzir na necessidade de maiores e mais frequentes esforços dos cidadãos para custear os bens e as benfeitorias de interesse público. A corrupção faz aumentar os custos e reduz a qualidade das infraestruturas. A corrupção faz aumentar os esforços de todos os cidadãos em benefício de muito poucos. Neste simples exemplo, os beneficiados são claramente a empresa construtora, que garantiu a execução da obra por um valor superior ao real, e os funcionários da Administração Pública que se deixaram corromper para, em nome da sociedade que lhes confiou essas funções e que lhes paga um salário para que as exerçam de forma devida, autorizar ilegalmente a edificação do Hospital nos termos, nas condições e pelos valores mais propícios aos interesses da construtora e pouco ou nada concordantes com os interesses dos cidadãos – excetuando as funções de interesse público no âmbito da saúde que são asseguradas por um hospital.

Noutra vertente ainda, a corrupção pode apresentar também um efeito direto na redução sobre o valor das receitas do Estado. Imaginemos a situação de um funcionário dos serviços de cobrança de impostos que, a troco de um pagamento corrupto, permite por exemplo que uma empresa contribua com um reduzido valor de impostos, ou que não contribua de todo. Neste quadro verificamos que a corrupção apresenta um efeito de redução das receitas do Estado. A esta redução há-de corresponder um esforço acrescido aos restantes contribuintes – através por exemplo de sobretaxas de imposto a cobrar – de modo a garantir o mesmo valor global das receitas do Estado. A alternativa a esta solução passa pela aceitação, como valor normal, de um valor de receita do Estado efectivamente mais reduzido.

Através destes dois pequenos exemplos e sem nos debruçarmos sobre outros potenciais efeitos – que existem e não são poucos – verificamos que a corrupção provoca um efeito que podemos caracterizar como de triplo empobrecimento do Estado, da sociedade e dos cidadãos, na medida em que se assume como um fator de incremento dos custos de aquisição, de antecipação dos custos de conservação e de redução das receitas, prejudicando e vitimizando toda a sociedade, por exigir maiores esforços aos cidadãos.

E tudo para que poucos – muito poucos mesmo! – sejam beneficiados por esta espécie de lógica, com contornos quase subversivos relativamente às expectativas sociais, à confiança nas relações sociais e, no limite, à própria coesão social.

Porém a questão da existência de vítimas de corrupção nos termos descritos inicialmente parece apresentar um outro efeito de grande importância explicativa para a dinâmica das próprias práticas corruptas. É que a perspetiva de inexistência de vítimas concretas destes crimes parece conter em si o potencial para se tornar num fator facilitador, de desinibição e porventura até de motivação no processo mental de decisão para a opção por estas práticas.

Será sobretudo por esta razão que os seus autores invocam, depois de confessarem a autoria dos factos – coisa rara, diga-se a propósito – que os seus atos não prejudicaram ninguém, que não roubaram nada a ninguém, que ninguém ficou diretamente lesado com a sua ocorrência.

Provavelmente os autores dos maiores atos de corrupção seriam incapazes de ficar com uma simples carteira que encontrassem esquecida sobre uma mesa de café, por sentirem que se o fizessem, mais tarde alguém iria ter problemas concretos, resultantes de falta do seu dinheiro, como por exemplo ficar impossibilitado de comprar alguma coisa para comer, ou para alimentar os filhos, ou simplesmente para adquirir o bilhete de autocarro para regressar a casa.

É precisamente para reduzir as margens destas arbitrariedades nefastas, que provocam este efeito de triplo empobrecimento dos Estados e uma perda gradual nas expectativas de confiança das pessoas, umas sobre as outras e sobre as próprias instituições, que importa que os Estados, as sociedade, os governos, os políticos e os cidadãos, organizados através da sociedade civil, adquiram uma consciencialização crescente acerca da importância e da necessidade de controlar e prevenir o problema e que o façam de forma séria e rigorosa, através da definição e adoção das estratégias e das políticas mais adequadas. A geração de hoje e sobretudo as futuras merecem e justificam este esforço!