Egídio Cardoso, Visão on line,

Os acontecimentos do 11 de setembro de 2001, para além do alarme social e da radical alteração provocada no paradigma da segurança mundial, contribuíram, de alguma forma, nos meses que se seguiram, para retirar do quase anonimato, um secular sistema de transferências, apenas porque terá sido a via utilizada para fazer chegar, às mãos dos operacionais, o dinheiro necessário à preparação e execução daqueles atos terroristas.
Vulgarmente conhecido por Hawala e apelidado frequentemente de banca subterrânea, banca paralela, sistema bancário não oficial e, numa outra aceção, de banca étnica, este sistema integra organizações complexas que se implantaram no mercado das transferências de valores e consolidaram posições, a ponto de merecerem a atenção cuidada quer do Banco Mundial quer do Fundo Monetário Internacional, o escrutínio atento do GAFI e ainda a preocupação da Interpol que, em texto publicado na sua página de internet, analisa de forma circunstanciada as suas origens, ligações e mecanismos de funcionamento.
Enviar dinheiro não o enviando, é a melhor definição para este sistema que, ao longo de vários séculos, substituiu um sistema bancário então inexistente. Manteve, contudo, uma diferença abissal no que tange ao cumprimento de regras: um banco, para além de receber valores para depósito, conceder empréstimos e operar no mercado de capitais, dedica-se, ainda, à prestação de um sem número de serviços financeiros complexos, recebendo e pagando juros, cobrando taxas e comissões, tudo dentro do escrupuloso cumprimento de uma complexidade de leis, normas e regulamentos, quer nacionais, quer internacionais, obedecendo a formalismos e curando de tudo registar e preservar, estando ainda sujeito a diversas fiscalizações, auditorias e controlos. Por oposição, as organizações que integram o sistema informal apenas operam no mercado das transferências, não obedecem a normativos legais, regem-se pelos seus próprios códigos de conduta, não são fiscalizados e não prestam informação a quem quer que seja.
Com origens que remontam aos tempos da dinastia Tang na antiga China (século IX), foram-se espalhando e criando estruturas sólidas ao longo do tempo, dando lugar a organizações complexas e actuantes, como são, para citar apenas as mais conhecidas, o Hundi indo-paquistanês, o Fei-ch’ien chinês, o Hui Kuan de Hong Kong, o Padala das Filipinas e o Phoei kwan tailândês que, entre uma multiplicidade de outros grupos de menor dimensão, cresceram impulsionadas pelo fenómeno migratório que caracterizou a primeira metade do século XX.
Recorrendo a mecanismos de uma simplicidade desconcertante e beneficiando da insipiência que então caracterizava as ligações bancárias entre continentes, foram e continuam a ser o meio privilegiado e eficaz, usado pelos emigrantes, para procederem à remessa das suas economias para os seus países de origem.
O seu mecanismo de funcionamento pode ser resumidamente descrito como segue: o emigrante dirige-se a um operador do sistema (hawaladar) - uma qualquer lavandaria, pizzaria, casa de câmbios, agência de viagens ou pequena loja numa qualquer esquina da cidade onde trabalha – e aí entrega a quantia que quer remeter. Pelo serviço pagará uma pequena comissão e como garantia recebe um código que remeterá ao destinatário. Mediante uma simples comunicação, por fax, telefone ou, mais moderna¬mente, por mail, é dada ordem ao hawaladar correspon¬dente, localizado no destino, que disponibilizará um valor equivalente a ser entregue à família do emigrante perante a exibição do código respectivo. O encontro de contas entre os dois operadores far-se-á em menos de uma semana por uma qualquer operação semelhante mas de sentido inverso, completando-se o circuito sem que o dinheiro tenha circulado, não existindo comprovativos, recibos, registos, ou fluxos financeiros visíveis que permitam estabelecer um qualquer elo de ligação ou conexão entre montantes.
Tudo se passa no campo da informalidade e a eventual concorrência do moderno e sofisticado sistema bancário nunca retirou dimensão a estas organizações que se expandiram e modernizaram ao longo dos tempos. Sustentados em redes de relações étnico-familiares e pautando a sua conduta segundo rígidos códigos de honra, caracterizam-se por operarem em canais e circuitos à margem de controlos e regulamentos. Não obstante a ausência de registos, são absolutamente fiáveis e eficientes, não deixam rasto, movimentam grandes quantias sem problemas ou restrições, mesmo que em numerário vivo, são impermeáveis a crises financeiras, não são afectados por convulsões, não fazem perguntas e não criam obstáculos a qualquer cliente, ainda que seja ou pareça suspeito.
São estas características que os tornaram apetecíveis e permeáveis ao crime organizado, especialmente para a realização de operações de branqueamento ou pagamentos relacionados com suborno, corrupção, tráfico internacional de droga, armas e seres humanos, constituindo ainda um excelente instrumento de evasão fiscal e meio preferencial para as transferências relacionadas com o financiamento do terrorismo.
Seguir o rasto de fluxos financeiros que resultem de operações efectuadas num sistema hawala, constitui tarefa quase impossível; não existem registos, documentos ou ligações que permitam estabelecer uma ponte entre movimentos. Uma transferência de dinheiro limpo (white hawala) – remessas de emigrantes, por exemplo – pode ter como operação inversa dinheiro sujo (black hawala), sem que isso se torne visível, agravado ainda pelo facto dos fluxos reais ocorrerem separadamente e em locais distantes já que a maior parte destas operações ocorre entre regiões situadas em diferentes continentes.
Consequentemente, investigar uma qualquer operação que tenha sido feita há mais de uma semana, redundará em fracasso. Qualquer registo ou indício que permita estabelecer uma relação útil, certamente já não existe; por essa altura, todos os encontros de contas já terão sido concluídos e as anotações destruídas.
As comunicações de operações suspeitas que têm chegado às autoridades é razão suficiente para se perceber que, em Portugal, estarão activas tantas redes de génese informal quantas as comunidades emigrantes aqui radicadas, sem que, pelo menos até agora, tenham sido identificadas operações ligadas a actividades criminosas. Não sendo preocupante, é quanto basta para que se conclua que o nosso país não é imune ao fenómeno.