Rui Henrique Alves, Visão on line,
Erle Stanley Gardner (1889-1970) foi um dos mais notáveis escritores de livros policiais do século XX. Ao longo de quarenta anos, publicou quase nove dezenas de obras com o título de “O Caso de...”. Nelas havia um crime e surgia um aparente criminoso “perfeito”, aquele para o qual toda a evidência parecia apontar para que fosse o responsável. Não se tratava, contudo, do “verdadeiro” culpado, o qual só era conhecido no final da obra, graças sempre a surpreendentes reviravoltas, lideradas por um advogado criminal de cariz excepcional, chamado Perry Mason.
Nos últimos dois anos, a zona euro tem estado debaixo de fogo nos mercados financeiros, num facto que, com alguma analogia, se poderia referir como um “crime”, cujo criminoso “perfeito” também seria fácil de descortinar. Neste caso, a culpa seria aparentemente dos especuladores, cuja actuação, começando por visar os países mais frágeis (e, em particular, a sua dívida pública), teria por finalidade última a desintegração do projecto europeu de união económica e monetária (UEM).
Ora, tal como sucedia nos livros de Stanley Gardner, parece legítimo questionar quem são os verdadeiros culpados. É que os especuladores formulam expectativas, actuam com base nas mesmas, assumindo riscos e tentando obter lucros. Ao proceder desta forma, os especuladores apenas levam a cabo o seu trabalho normal, longe de um motivo necessariamente mais obscuro.
A verdade é que a actuação dos especuladores nos mercados financeiros pode conduzir a resultados particularmente duros. Em particular, se muitos agentes procederem de forma idêntica e/ou envolvendo operações de montante significativo, as expectativas tenderão a tornar-se realidade. A verdadeira questão centrar-se-á em saber o que levou à formação de expectativas com uma credibilidade aparentemente tão forte que tenha conduzido diversos agentes económicos a especular contra diversos países da zona euro e, em última análise, contra a própria moeda única europeia.
Ou seja, valerá a pena questionar quais as verdadeiras razões que estão por detrás da instabilidade vivida pela zona euro, bem como para averiguar se haverá condições para uma importante reviravolta na situação, liderada por personalidades políticas e económicas de relevo.
No que respeita à primeira parte do problema, uma análise mais cuidada da curta história da moeda única permitir-nos-á concluir que o “verdadeiro” criminoso pode ser o actual enquadramento institucional da UEM. Poderão ter sido as suas diversas debilidades, existentes desde o início mas só agora evidentes, a induzir a actuação dos especuladores, visando sobretudo as economias mais frágeis e, por contágio, produzindo efeitos sobre a estabilidade de toda a área.
Assim, num contexto marcado pela falta de mecanismos de ajustamento alternativos ao uso da taxa de câmbio nominal, pela insuficiente atenção atribuída à coordenação das políticas orçamentais nacionais e pela excessiva tendência pró-estabilidade dos preços (fruto claro do domínio alemão), a insuficiente importância atribuída à convergência real como possível condição prévia para a participação na moeda única, junto com erros no processo de adequação ao novo contexto macroeconómico, revelou-se (quase) fatal para algumas economias.
O caso português é, a esse nível, bastante ilustrativo. Após a criação do euro, a economia voltou a divergir em termos reais da média europeia. A descida das taxas de juro, o fruto mais evidente da convergência nominal, induziu todos os agentes económicos a um excessivo endividamento. As políticas orçamental e de rendimentos foram conduzidas de forma deficiente. O resultado foi um conjunto de importantes desequilíbrios macroeconómicos que, num primeiro momento, incentivaram os ataques especulativos à dívida pública portuguesa e, numa segunda fase, acabaram por obrigar à implementação de um programa de ajustamento bastante restritivo, com custos significativos ao nível do produto e do emprego e resultados finais incertos.
No que respeita à segunda parte do problema, no caso europeu e na clara falta de líderes políticos excepcionais, que pudessem jogar um papel análogo ao de Perry Mason, não parece expectável uma alteração decisiva nos tempos mais próximos. Em todo o caso, a quebra parcial, no final da semana passada, nas ortodoxas posições alemãs (para quem a austeridade parece ser a panaceia de todos os males), forçada pela concertação entre Mario Monti, Mariano Rajoy e François Hollande, podem permitir alguma esperança numa mudança da actuação europeia. Esta deverá tornar-se atempada e dar a devida importância às políticas de crescimento e emprego e à necessidade de uma forte convergência real. Sem isso e sem maiores esforços para a concretização de uma verdadeira governação económica e talvez de uma real União Política, dificilmente o ataque será parado...
NOTA:
O presente artigo funda-se no paper “El Caso del Ataque a la Eurozona: de Quién es la Culpa?” escrito em co-autoria com Óscar Afonso, que será publicado no número especial de Setembro da Revista Galega de Economia.