José António Moreira, Visão on line,

A notícia apareceu em primeira-mão no “site” do Jornal de Negócios, no dia 17 de Abril:
“FMI: Dívida das empresas públicas portuguesas não reflectida nas contas triplicou em 4 anos. A dívida das empresas públicas relativamente ao PIB fora do perímetro das Administrações Públicas em Portugal quase triplicou nos últimos quatro anos, e registou o maior aumento entre as economias com maiores dívidas, segundo cálculos do Fundo Monetário Internacional. …”.
Até podia ter sido mais uma notícia para arquivo mental na secção dos grandes “buracos públicos”. Aí se juntaria ao da Madeira, ao das autarquias, ao da Parque Escolar, ao das parcerias público privadas (PPP) … a muitos outros que o tempo vai diluindo na memória. Mas não foi. De repente deu-se um “click”. A notícia atuou como uma espécie de auxiliar de memória: catapultou-me para o caso da famigerada empresa americana Enron, que tantos rios de tinta fez correr a partir de 2001, altura em que faliu.
A Enron era uma das maiores empresas mundiais de distribuição e comercialização de energia elétrica. Por finais do século, mais concretamente em 1999 e 2000, tornou-se uma das mais procuradas da Bolsa de Nova Iorque, com valorizações de 56 e 87%, respetivamente. Porém, a “mais admirada”, segundo o inquérito da revista Fortune, era, já nessa altura, embora poucos (ninguém?) o sonhassem, uma empresa condenada. No ano seguinte, pediu a falência, à altura a maior de sempre nos Estados Unidos.
Uma estratégia agressiva de crescimento cedo provocou o aparecimento de perdas avultadas, fruto de contratos ruinosos e da intensiva utilização de derivados financeiros. No entanto, uma empresa que necessitava estruturalmente do mercado de capitais para financiar essa estratégia de expansão não poderia, sem a colocar em causa, tornar públicas tais perdas. Os seus dirigentes optaram, então, por as esconder. Neste contexto, a mera utilização da flexibilidade das normas contabilísticas, por via da denominada “criatividade contabilística”, mostrou-se ineficaz face à dimensão das perdas a ocultar. E, como está documentado de outros casos com idêntico final, aquilo que começou pela “criatividade” cedo descambou para a fraude financeira. A Enron criou centenas de “empresas satélites” para onde remetia as perdas registadas. Propositadamente, tais empresas tinham as características necessárias para serem legalmente dispensadas de integrarem o perímetro de consolidação. Em linguagem simples, elas e as perdas que albergavam não tinham impacto nos resultados consolidados divulgados pela Enron, possibilitando a esta mostrar ao mercado os proveitos gerados e deixando escondidas “debaixo do tapete” as perdas.
As consequências sociais da falência são conhecidas ou, pelo menos, fáceis de adivinhar. Dois aspetos adicionais são de realçar. Os administradores e funcionários envolvidos na fraude foram severamente punidos com penas de prisão e obrigatoriedade de pagamento de avultadas indemnizações; a auditora das contas, a (ex-)gigante mundial Arthur Andersen, pelas responsabilidades em não ter reportado a fraude, também foi arrastada, tendo a sua falência, em 2002, lançado para o desemprego, em todo o mundo, mais de 80.000 funcionários.
Há semelhanças entre este caso e o que aconteceu no Estado Português nos últimos anos antes da entrada da “troika” em cena. Refira-se a “criatividade” (ou algo mais?) de que os governantes (nacionais, regionais e municipais) lançaram mão. O objetivo era poder continuar a gastar, mas sem que isso transparecesse no défice apresentado pelo Orçamento Geral do Estado. As PPP, as empresas municipais, as empresas públicas, entre outras, foram os veículos usados para o efeito. Ou seja, os “tapetes” para debaixo dos quais se varreu parte dos gastos. Ainda hoje, quase a cada dia que passa, se vão descobrindo efeitos da dita “criatividade” e não se sabe, em concreto, quantos “buracos” ainda estão à espera de serem descobertos sob esses “tapetes”.
Porém, há uma questão que tem de ser discutida: em que ponto é que os governantes (nacionais, regionais e municipais) passaram – se é que passaram – do uso da (mera) “criatividade contabilística” à fraude por ocultação de informação fundamental aos cidadãos e demais “stakeholders” do Estado?
Tal discussão trará, associada, necessariamente, uma outra: a da responsabilização dos governantes envolvidos. Em minha opinião, ela deverá ser de natureza judicial, por duas ordens de razões: i) o que estará em causa, a provar-se, serão responsabilidades ligadas à divulgação de informação incompleta ou incorreta sobre as contas de Estado, com contornos de atuação fraudulenta. Não se tratará, pois, de penalizar alguém pela tomada de decisões de natureza meramente política, por mais questionáveis que elas possam ter sido; ii) a “responsabilização política” – independentemente do que se possa entender por tal –, não tem efeitos sobre “políticos ocasionais”, que voltam às suas profissões quando terminam as “comissões de serviço”, nem tão pouco sobre políticos de carreira, num regime em que o eleitor vota numa lista de candidatos onde os “maus” estão “escondidos”.
Se Portugal fosse uma empresa era possível que atualmente já não existisse como tal. No entanto, não há culpados pelo estado a que a se chegou. Neste domínio da responsabilização, as diferenças para o caso Enron são abissais.
É, pois, imprescindível que se apurem responsabilidades e, sendo caso disso, se punam eventuais comportamentos fraudulentos. Para que o futuro não seja a repetição do passado e, de modo particular, para não voltem a ocorrer “festas” à revelia de quem as tem de pagar.