António João Maia, Visão on line,

Há dias, enquanto jogava monopólio com os meus filhos (quem não se lembra das longas e deliciosas tardes de Verão passadas, com os amigos e um copo de refresco, em volta do tabuleiro esverdeado deste jogo, que de uma forma minimamente realista procura simular muitos dos aspetos das relações económicas das pessoas e das sociedades) fui assaltado de surpresa por uma ideia – admito que utópica ou, pelo menos, ingénua – que de então para cá me tem feito refletir e acabou mesmo por me empurrar para este espaço de partilha pública de opinião.
A ideia é muito simples e, no essencial, julgo poder traduzir-se através do seguinte conjunto de questões: E se toda a vida económica e social em que vivemos decorresse como no monopólio? Se tudo fosse assim tão transparente? Se todos soubéssemos, de forma aberta, franca e descomplexada, o património uns dos outros e a forma como o fomos adquirindo ou alienando, ou mesmo como o enriquecemos ou empobrecemos? – os terrenos; as casas; os hotéis; as companhias; as empresas; as sociedades; as participações comerciais; as associações; os negócios; os contratos; o dinheiro; os enganos no banco a nosso favor; os prémios de lotaria, de beleza ou mesmo das palavras cruzadas, ou ainda elementos como o cumprimento de penas de prisão e outras sanções, sem deixar de passar naturalmente pelos (todos os temos) amigos que nos dão tiros –. E se tudo funcionasse assim, não numa lógica de voyeurismo, de mera exposição ou perseguição alheia, mas unicamente como prática cultural natural, do quotidiano de uma sociedade transparentemente evoluída, cujos cidadãos fizessem questão de, em conjunto, evidenciar uns perante os outros que a sua seriedade – individual e colectiva – não seria apenas uma invocação, mas também e sobretudo uma demonstração?
Em resumo: E se toda a vida pública das pessoas, das empresas, da Administração Pública e do próprio Estado, enfim de toda a sociedade, fosse efetivamente Transparente, sem sombras nem sombreados, numa lógica de pura igualdade, em que toda a informação e todos os dados se encontrassem acessíveis de modo universal? Seria o mundo (dos homens) assim tão distinto daquilo que é?... Em boa verdade, julgo não existirem elementos consistentes que nos permitam responder a esta questão de uma forma minimamente satisfatória.
Concedo, como disse no início, que em si mesma a ideia seja utópica ou mesmo ingénua, uma vez que parte de um pressuposto totalmente contrário aos cânones da vivência que conhecemos e que, pelo processo de aculturação, têm vindo a ser reafirmados (tornando-os quase inquestionados e inquestionáveis) ao logo do tempo pelas sucessivas gerações. Efetivamente, esse quadro em que nos temos movido tem-nos levado a assumir e aceitar, com toda a naturalidade, a existência de zonas sombreadas ou menos claras na vivência social e sobretudo nas relações económicas.
No entanto e ainda assim, parece-me que a possibilidade aqui proposta não deixa de ser, ao menos, um ponto de partida para uma eventual reflexão acerca de um tema tão atual como tem sido o da Transparência na vida pública. Além do mais, a eventual existência real de um quadro com as características que aqui suscitamos, teria pelo menos o poder de contribuir para uma melhor clarificação e distinção das noções de interesses pessoais, interesses de grupo e interesses coletivos, bem como as fronteiras que os delimitam e as linhas ou forças de convergência e de divergência que se criam e instalam entre eles. Seria seguramente uma forma de reduzir as zonas de menor Transparência existentes nas actividades económicas e comerciais entre os privados e ente estes e o Estado.
Bem sabemos que o nosso quadro cultural é ainda muito marcado pelo pressuposto de que o segredo é a alma do negócio. Porém, as novas lógicas comunicacionais que o processo de globalização tem vindo a edificar, com tendências crescentes de maior facilidade na disponibilização, circulação e acesso a todo o tipo de informação, vão acabar por nos empurrar para contextos de maior Transparência. Como sugere Mário Ceitil, em o carro de Jagrená (2002, Edições Sílabo), começa a ser tempo de a alma se assumir como o segredo do negócio.
Apesar de em si mesmas não serem necessariamente espaços de fraude, a verdade é que estas zonas sombreadas, associadas à ausência de alguma transparência, são propícias ou têm pelo menos o potencial para desenvolverem, como fungos, as brechas onde acabam por florescer as situações fraudulentas. É neste jogo de luzes em que muitas vezes se tende a mostrar menos do que se apregoa e, quando se mostra, se confunde mais do que se esclarece, como num passe de ilusionista, que mostra mas a audiência não consegue ver, que podem crescer fenómenos como a corrupção, a economia paralela, a evasão fiscal e tantos outros interesses difusos, quase sempre divergentes ou com poucos pontos de contacto com o interesse geral da sociedade.
Estudos como A Economia Não Registada em Portugal, de Nuno Gonçalves (2010 - http://obegef.pt/images/gf_upload/e002.pdf), Forensic Accounting em Portugal – Evidência Empírica, de Nuno Moreira (2010 - http://obegef.pt/images/gf_upload/e001.pdf), Esforço de Quantificação de Fraude em Portugal, de Carlos Pimenta (2009 - http://obegef.pt/images/gf_upload/wp003.pdf), Conflitos de Interesses, de Glória Teixeira e Helena Freire (2009 - http://obegef.pt/images/gf_upload/wp001.pdf) a par dos relatórios anuais da Transparência Internacional (http://www.transparency.org/publications/annual_report) e do GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção, do Conselho da Europa - http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/greco/evaluations/index_en.asp), por exemplo, têm evidenciado a existência, em Portugal e um pouco por todo o mundo, de problemas associados a práticas fraudulentas e de corrupção e ao seu desenvolvimento precisamente através destes espaços sombrios de menores índices de transparência.
Para finalizar acrescento apenas que, a meu ver, a génese deste problema não está nos outros, como é por vezes tão comum pensarmos e afirmarmos entre nós. Não, a culpa deste estado de coisas – se faz sentido falar em culpa – é de todos e começa precisamente em cada um de nós. Ninguém está moralmente legitimado a reclamar atitudes e posturas de transparência aos outros, se não for capaz de o evidenciar primeiro relativamente à sua própria vida, se não tiver telhados de vidro, como sabiamente o povo costuma dizer.
Afinal quem tem medo da Transparência? E porquê? Transparência e seriedade nos procedimentos podem não ser exactamente sinónimos, mas não são seguramente conceitos estranhos um ao outro, nem sequer se encontram muito afastados entre si. A seriedade e a transparência não se proclamam. Afirmam-se e evidenciam-se. Transmitem-se por sinais.
É inquestionável que a realidade é o que é. Tudo o mais não passa de utopia, de sonho. Porém a mudança – o que tem sido a história da humanidade se não um processo contínuo de mudança e adaptação? – deve ser norteada por um mix de realismo com alguma utopia. E tem sido muitas vezes essa utopia que confere o ânimo para continuarmos a acreditar num mundo melhor.
Afinal, como diz o poeta, o sonho comanda a vida…