José António Moreira, Visão on line,
1. As nomeações para o Conselho Geral e de Supervisão da EDP – Energias de Portugal, SA e para a administração da AdP – Águas de Portugal, SGPS, SA estão na ordem do dia. O Governo está debaixo de fogo, sob suspeição de ter interferido em ambos os processos. Embora sejam discutidos conjuntamente, sob um mesmo prisma – o das nomeações políticas – penso que são casos diferentes e como tal devem ser tratados.
2. No caso da EDP, apesar do ramalhete de detentores de “cartão laranja” que foram convidados para usufruir de uma sinecura (*), julgo não ser o Governo o responsável pelos convites. Apesar de se tender a olhar para este tipo de situações do ponto de vista de um poder político que quer interferir na condução das organizações empresariais, é esquecido que existe uma outra face da moeda: a do interesse dessas organizações em estarem nas boas graças do poder político, o de com ele terem fortes ligações. Olhando para o contexto atual, onde sobressaem os processos de liberalização do mercado energético e de discussão do tarifário energético, penso que no futuro próximo, nesta fase pós-privatização, é a empresa quem tem mais a ganhar com o estabelecimento dessas ligações com o poder. Julgo ter sido esse o raciocínio dos acionistas de referência da EDP, que desataram a convidar toda a figura laranja (e uma ou outra azul) de que se lembraram. Não é bonito, claro, porque é sintomático da promiscuidade existente entre política e negócios. Mas é uma decisão legítima dos acionistas de uma empresa (quase) privada. O que se espera é que tais ligações não interferiram em futuras decisões dos governantes relacionadas com essa empresa.
3. O Governo está, pois, a ser injustamente acusado de interferência neste caso. E como as situações de injustiça nunca são bonitas, esta também o não é. Porém, o Governo encontrará no seu próprio comportamento, em termos de nomeações, a justificação para essa injustiça. As que fez para AdP bradam aos céus. Sobretudo uma delas.
4. Considero-me um tipo cordato, que procura sempre perceber e desculpar as falhas alheias. Por isso, tento esquecer o que o senhor primeiro-ministro prometeu em campanha eleitoral a propósito de nomeações; fecho os olhos ao facto das oportunidades para aceder a qualquer cargo público só tenderem a existir desde que se possua o cartão partidário da cor certa na hora certa. No entanto, considero ser o cúmulo da indecência – e por isso não consigo desculpar – que se nomeie para a administração da AdP alguém que é o actual responsável de uma organização (a autarquia do Fundão) que está em conflito com a empresa. Isto parece uma fábula de La Fontaine, onde à raposa fosse feito o convite para tomar conta do galinheiro. (Estes negócios das águas parecem andar ligados com as fábulas: não é que em 1652 La Fontaine, antes de se lançar na escrita, assumiu o cargo de seu pai … como inspetor de águas?)
5. Ó senhor primeiro-ministro, não nos venha justificar a nomeação com o curriculum do nomeado. Não haverá neste país gestor que não esteja refém de um conflito de interesses como o referido e tenha curriculum suficiente para desempenhar cabalmente o lugar de administrador na empresa AdP? Também não nos venha dizer que não é crime ser-se militante partidário, porque isso sabemos todos nós. Mas o inverso também é verdade: por que é que parece ser crime, para efeitos de nomeações, não ter filiação partidária?
6. Neste momento em que estamos esmagados pela austeridade salvífica que nos atirou para cima, a última coisa que qualquer cidadão precisaria era constatar, pelos sinais transmitidos por algumas atuações do Governo no domínio das nomeações para lugares dirigentes, que tudo continua igual ao passado governamental que nos trouxe até à beira do abismo. Não esqueça senhor primeiro-ministro, “à mulher de César não basta ser séria, é preciso parecê-lo”. Se não virmos sinais de contenção no Governo que nomeamos, a que nos devemos agarrar para suportar e compreender a austeridade?
7. Mas há ainda um outro prisma nesta nomeação para a AdP que não é menos censurável. Se da parte de quem nomeia não houve decência, muito menos ela existiu da parte do nomeado. O que seria de esperar da parte de alguém – ainda por cima um político – que colocasse a Honra (**) entre os seus princípios comportamentais? Que tivesse uma resposta do género: “Muito obrigado por se terem lembrado de mim, mas não posso aceitar o convite que me fazem. A minha atual relação com a AdP, por via do conflito existente, não seria entendida pela opinião pública e retirar-me-ia a liberdade de que necessito para poder participar ativamente na administração da empresa”.
8. Já me acusaram de ser um lírico. Confesso que espero sempre da parte dos meus concidadãos um sentido de Honra que eles nem sempre têm para dar. Aliás, às vezes fico com a sensação de que nos tempos que vivemos assuntos de Honra são tratados como coisa do passado, como uma relíquia histórica que não se coaduna com um modo de atuação pessoal baseado no princípio do “salve-se quem puder”.
Em tempo, a partir do dicionário:
(*) Sinecura: Emprego rendoso e de pouco ou nenhum trabalho.
(**) Honra: Um sentimento humano relacionado com a procura do respeito público, manutenção de bom-nome e dignidade.