António João Maia, Visão on line,

Assinala-se a 9 de Dezembro o dia internacional contra a corrupção. Uma vez mais o mundo e as mais altas instâncias hão-de afirmar, em uníssono, a perversidade que, aos mais diversos níveis, se reconhece estar associada ao problema. Afirmarão, de entre outras particularidades, que a corrupção distorce os índices efetivos de democraticidade associados aos modelos de organização política em que vivemos, que acentua as desigualdades sociais, designadamente no acesso aos recursos públicos, e, a um nível mais profundo, que questiona, até ao ponto de colocar em crise, a consistência do quadro de valores morais e culturais em que acreditamos viver.
Efectivamente, os diversos estudos de carácter científico que têm sido realizados um pouco por todo o mundo relativamente a esta problemática, têm revelado que a questão da corrupção apresenta muitos fatores que a explicam e sobretudo que arrasta consigo um conjunto muito alargado de efeitos, mais ou menos evidentes e profundos, que afectam negativamente, aos mais diversos níveis, o modelo de organização social, política e económica em que vivemos.
Porém não é sobre os resultados de tais estudos que nos queremos debruçar hoje, até porque tal exercício se revelaria uma tarefa de execução árdua, de leitura fastidiosa e seguramente fora dos propósitos a que deve obedecer um texto com as características deste, de partilha de uma breve reflexão.
Muito se tem dito e escrito sobre a corrupção. É provavelmente um dos temas que nos últimos anos mais tem sido veiculado pela comunicação social e que, por isso mesmo, mais espaço tem vindo a ocupar no discurso da opinião pública. Quase todos os dias somos verdadeiramente bombardeados com notícias de novos factos com contornos de suspeição de práticas desta natureza e, correlativamente, acabamos por incluir o tema nas conversas diárias que temos com os nossos familiares, amigos e colegas de trabalho. A corrupção tem estado seguramente em destaque na agenda pública dos nossos dias.
Porém, no meio de todo este ruído edificado em torno do problema, importa que se suscite uma questão: O que é efetivamente a corrupção, ou, por outras palavras, de que falamos quando nos referimos à questão da corrupção?
Quase todas as pessoas, muito por força de tais torrentes noticiosa e discursiva, a que se encontram permanentemente expostas, e que ajudam a alimentar, têm a sua própria noção do que seja a corrupção. Apesar de essa noção não ser exatamente a mesma relativamente a cada cidadão, ela apresenta no entanto um conjunto nuclear de características que, embora com nuances, tende a ser partilhado de forma mais ou menos ampla pela generalidade das pessoas. Este conjunto nuclear de características, que é passível de ser conhecido, designadamente através de inquéritos de opinião, é aquilo que habitualmente se conhece como perceção social da corrupção.
Pelo que aparenta significar (uma imagem ou um discurso sobre um problema) e sobretudo pela forma como é construído e sustentado (muito potenciado pela comunicação social e pelo discurso da opinião pública), poderíamos ser facilmente tentados a considerar que o conhecimento da perceção social sobre a corrupção não é necessário nem importante para a caracterização do problema, nem para o estabelecimento das correspondentes estratégias de controlo. De forma empírica, o que parece importar de facto são as características que objetivamente definem o problema, nomeadamente as ocorrências que dele vão sendo conhecidas e que chegam ao sistema punitivo da justiça, ou seja a tipificação penal dos ilícitos e os correspondentes números estatísticos, e ainda porventura a caracterização dos contextos em que tais ocorrências se desenvolvem.
Porém e segundo o entender da maioria dos estudiosos destas questões, com os quais estamos de acordo, o conhecimento dos contornos desse discurso e dessa perceção é muito importante, sobretudo para o trabalho de definição de estratégias melhor adequadas à prevenção e ao controlo do problema. De facto, o corpo teórico conhecido e também a própria experiência de vida de cada um de nós, dizem-nos que as formas de nos relacionarmos com uma determinada realidade, seja ela qual for, depende muito da forma como olhamos para ela, como a vemos, como a percecionamos, como a antecipamos. Neste sentido, o quadro de características que os portugueses associam ao problema da corrupção tenderá naturalmente a ser considerado como referência a que recorrem e que tomam em consideração quando, por qualquer razão, se cruzam com o próprio problema, ou seja, quando são convidados a tomar parte, ou decidem eles próprios tomar parte, em atos concretos de corrupção.
Posta a questão nestes termos, olhemos então, de forma necessariamente muito sucinta, para três possíveis vertentes de análise do problema: - A forma como a imprensa escrita portuguesa constrói o seu discurso sobre a corrupção e os principais vetores que esse discurso mediático apresenta; - A perceção social que os portugueses possuem sobre o problema da corrupção; - A dimensão que é efetivamente conhecida do fenómeno, pelo menos dos principais ilícitos que lhe estão associados. Em complemento, procuraremos fazer uma breve reflexão sobre as implicações que cada uma destas vertentes apresenta sobre as demais e sobre a eventual evolução futura da dimensão do próprio problema.
Relativamente ao discurso produzido pela imprensa e em concordância com os dados que recolhemos e analisámos no estudo Corrupção: Realidade e Percepções: O Papel da Imprensa (documento acessível em http://www.bocc.uff.br/pag/maia-antonio-corrupcao-realidade-e-percepcoes.pdf), importa salientar a tendência registada nos últimos anos para um acréscimo significativo do número de notícias publicadas relativamente à ocorrência de actos de natureza da corrupção. Na sua maioria, estas notícias apresentam uma correspondência direta com processos judicias em curso, nomeadamente quando estes se encontram em fases muito iniciais das investigações e sempre que envolvem figuras de destaque da vida social e política da nossa sociedade. Importa desde já afirmar que esta tendência é natural, uma vez que resulta da própria lógica de funcionamento dos meios de comunicação social, que tendem a conceder um maior potencial de valor-notícia a factos que, cumulativamente, contrariem as expectativas sociais, sejam verdadeiramente novos ao nível da opinião pública e que envolvam pessoas ou organizações de elevada ou destacada posição no contexto social, político ou económico.
Por outro lado e relativamente a estes factos, assiste-se a uma exploração mediática muito intensa, por vezes até à exaustão, mas sempre muito focalizada no tempo (não mais do que uma a duas semanas). Depois, com o avanço do tempo e com a ocorrência de outros factos sociais dignos de destaque, aquele verdadeiro frenesim desvanece-se, restando apenas, aqui ou ali, alguns ecos, sobretudo através das conversas que as pessoas mantêm no seu dia-a-dia umas com as outras. É, de certa forma, o conhecido efeito de julgamento pela opinião pública ou julgamento na praça pública.
Posteriormente, em fases mais avançadas dos mesmos procedimentos judiciais, nomeadamente aquando do julgamento (nas situações em que tal sucede), os casos voltarão novamente à ordem do dia da comunicação social. Desta feita porém com uma tendência para serem apresentados com menor destaque. A dimensão novidade, que caracterizou a sua aparição inicial e lhes conferiu um grande potencial de valor-notícia, como referimos, deixou de estar associada aos factos. Esta particularidade explicará a menor atenção e intensidade que, neste segundo momento, tendem a ser-lhes concedidos. Esta constatação deriva naturalmente do facto inegável, mas inquestionável, de o tempo da justiça ser necessariamente diferente do da comunicação social. Muitos autores se têm referido a esta questão e parece não restar dúvidas que o sistema da justiça necessita do seu tempo próprio e do seu recato, para colher e analisar elementos, e depois para, com um certo distanciamento e objectividade, produzir as suas decisões avaliativas sobre os factos.
Importará também salientar que, com excepção de um ou outro caso pontual, os meios de comunicação social portugueses tendem a não fazer grandes investimentos no território do denominado jornalismo de investigação. Efectivamente, verificamos que, na sua maioria, os casos que são noticiados se encontram já sob investigação judicial, sendo muito poucas as situações em que a instauração de processos judiciais tenha resultado de trabalhos de investigação jornalística e das correspondentes notícias publicadas.
A propósito deste ponto, caberá referir a questão do relacionamento entre a comunicação social, as fontes de informação e as frequentes discussões públicas, por vezes muito intensas, acerca do segredo de justiça e da forma como ele é (des)respeitado. Relativamente a esta vertente do problema, e quando vivemos num tempo em que a comunicação é por demais central na vida das pessoas e das sociedades, parece-nos que seria no mínimo interessante e porventura necessário que se promovesse uma reflexão séria e profunda, desligada de qualquer caso concreto, que envolvesse todos os operadores do sistema de justiça e os próprios profissionais da comunicação social, relativamente aos modelos e aos processos comunicacionais entre o aparelho da justiça e a comunicação social, tendo em vista o incremento da transparência, da objectividade e da isenção da informação a prestar à sociedade (sem colocar em causa os diversos direitos e deveres processuais legalmente estabelecidos) e, por outro lado, a redução de zonas ou margens de especulação, sempre tão negativas para os suspeitos, para os serviços de justiça e, em última análise, para a própria sociedade.
Quanto ao levantamento da perceção social dos portugueses relativamente ao problema da corrupção em Portugal, são de destacar os dados anualmente produzidos pelo barómetro da corrupção da Transparency International (elementos disponíveis em http://www.transparency.org/policy_research/surveys_indices/gcb), os resultados do estudo Corrupção e Ética em Democracia: O Caso de Portugal (relatório acessível em http://www.obercom.pt/client/?newsId=410&fileName=obf3.pdf), ou ainda análises como O Discurso Social Sobre o Problema da Corrupção em Portugal (acessível em http://obegef.pt/images/gf_upload/wp007.pdf) ou a A Percepção Social Sobre a Corrupção em Portugal (acessível em http://bocc.ubi.pt/pag/maia-antonio-a-percepcao-social-sobre-a-corrupcao-em-portugal.pdf). De acordo com estes documentos, verificamos que os Portugueses tendem a utilizar o termo corrupção de forma que se pode considerar indiscriminada, referindo-se a todo o ato que implique o acesso ilegítimo a bens públicos e de natureza económica e financeira. Não têm dúvidas em condenar a prática de atos desta natureza, evidenciando a perspectiva que o problema tem vindo a crescer ao longo dos últimos anos, e que manterá esta tendência para o futuro. Referem ainda que a corrupção está localizada sobretudo ao nível político, nomeadamente na esfera dos relacionamentos entre os partidos políticos e os grandes grupos económicos e empresariais. Relativamente aos mecanismos de punição, evidenciam algum ceticismo quanto à capacidade do sistema de justiça para exercer de forma eficaz a sua função de controlo sobre o problema, o que poderá ser um bom tónico para mais facilmente se quebrarem barreiras auto-inibidoras e se aceitar entrar nesta espécie de jogo. Além destes traços, os portugueses assumem confiar na informação difundida e na ação desenvolvida pela comunicação social, designadamente na sua capacidade para denunciar publicamente situações de corrupção.
Olhando agora para a dimensão conhecida do fenómeno, importa, logo de partida, deixar claro que todos os indicadores conhecidos apontam para a existência de uma dimensão muito considerável de cifras negras, o que significará, em termos práticos, que muitas situações do tipo corrupção que ocorrem no dia-a-dia da vida em sociedade não chegam nunca ao conhecimento das instituições do sistema de justiça nem da comunicação social. Este efeito resulta sobretudo dos fortes pactos de silêncio que se geram entre as partes envolvidas nas relações corruptas, da inexistência de testemunhas dessas relações e ainda do facto de os pagamentos corruptos se processarem directamente entre as partes e em dinheiro vivo, não deixando assim qualquer rasto, fatores que em regra caracterizam estas práticas. Se a tais características acrescentarmos ainda o efeito potenciador resultante do cepticismo que as pessoas associam quanto à capacidade das instituições da justiça para lidar com o problema de forma eficaz, como se viu no ponto anterior, facilmente se compreende a existência de uma dimensão considerável de cifras negras e a eventual tendência para um crescimento futuro do número efectivo de ocorrências deste tipo de ilícitos.
No entanto apesar de todas as condicionantes mencionadas, algumas situações acabam ainda assim por chegar ao conhecimento das instituições do sistema repressivo e punitivo da justiça, designadamente às Polícias, ao Ministério Público e aos Tribunais. Uma pesquisa aos números registados pelas estatísticas oficiais da justiça (dados disponíveis em http://www.dgpj.mj.pt/sections/estatisticas-da-justica/index/) permite-nos ficar a conhecer alguns traços objetivos quanto à dimensão conhecida dos diversos crimes ocorridos no nosso país. No quadro anexo no final do texto, apresentamos os números correspondentes à dimensão oficialmente reconhecida relativamente ao crime de corrupção entre os anos de 1993 e 2009 (ainda não estão disponíveis os números relativos a 2010). Sem nos alongarmos muito, até porque os números falam por si, permitimo-nos no entanto destacar os valores médios de cerca de 30% de processos acusados, relativamente ao número total de processos registados. Significa este valor que, em média, um em cada três processos iniciados por suspeita de ocorrência de crime de corrupção tem permitido a recolha de elementos de prova suficientemente fortes para sustentar a acusação dos suspeitos (arguidos, de acordo com a terminologia jurídico-processual). Por sua vez e relativamente aos suspeitos acusados, os dados apresentados mostram que em média cerca de 65% acabam mesmo condenados, ou seja, que dois em cada três suspeitos acusados e julgados, são condenados pela prática de crimes de corrupção.
Se nos é permitida uma análise, consideramos que, assim isoladamente, estes resultados permitem sustentar algum grau de eficácia do sistema de justiça, quer ao nível da recolha das provas, quer depois ao nível da respetiva apreciação e aplicação de punições.
Porém, os números apresentados correspondem unicamente à dimensão do crime de corrupção, de acordo com o respectivo conceito jurídico-penal. Assim e se quisermos ir um pouco ao encontro de uma dimensão mais concordante com o conceito social de corrupção, teremos de consultar pelo menos o capítulo dos crimes contra o Estado (onde, de resto, se encontra também o crime de corrupção). Aí encontramos referências isoladas unicamente em relação aos crimes de peculato e de abuso de autoridade, confinando-se todos os restantes crimes do capítulo a um número muito residual de ocorrências, que surge identificado como outros crimes. Sem querermos estar a alongar a apresentação de números, sempre afirmamos que no mesmo intervalo de tempo (1993 a 2009) a dimensão registada para o peculato e o abuso de autoridade é tendencialmente menor do que a da corrupção, embora as taxas de incidência de processos acusados e de arguidos condenados não divirjam muito das que constatámos para aquele crime. Estes dados reforçam a leitura apresentada anteriormente quanto à existência de alguma eficácia do sistema de justiça na sua acção de controlo do problema.
Porém importa olhar para estes números com outra contextualização, para acrescentar que, com alguma probabilidade, os dados registados pelas estatísticas oficiais da justiça correspondem na sua maioria a casos vulgarmente conhecidos como de pequena corrupção. Pela sua natureza, nomeadamente pela baixa posição social das pessoas, pelos baixos montantes envolvidos e pelo carácter pontual dos atos, estes casos tendem a não oferecer grande potencial de valor-notícia. Por essa razão, não são noticiados pela comunicação social e, por conseguinte, não contribuem para a edificação da percepção social sobre o problema.
Ao contrário, os casos que efectivamente possuem grande potencial de valor-notícia, que caracterizamos anteriormente, correspondem à denominada grande corrupção ou corrupção política. Pela sua natureza, nomeadamente por corresponderem muitas vezes a um conjunto alargado de factos, implicando o envolvimento de muitas pessoas e com a implementação de estratégias de defesa que incluem, por vezes, o requerimento de realização de diligências meramente dilatórias (porém legalmente admissíveis), estes casos tendem a alongar-se demasiado no tempo. Em muitos deles, o momento da decisão final está afastado vários anos do momento em que as investigações tiveram o seu início. São estes casos, como vimos anteriormente, que, quando ainda no início das investigações, tendem a ser noticiados pela comunicação social. Depois, como se referiu, acabam por cair numa espécie de esquecimento social e a percepção que tende a ficar nas pessoas é de um alarido, em torno de um quadro factual, por vezes mal explicado, envolvendo o nome de algumas pessoas importantes e movimentações monetárias de grande dimensão, num verdadeiro turbilhão de informação nem sempre clara e por vezes até contraditória, mas invariavelmente sem referências a decisões por parte do sistema de justiça. Parece ser sobretudo assim, neste quadro contextual, que os portugueses formam a sua percepção sobre o problema da corrupção no seu país. Será pelo aparecimento de sucessivos quadros com estas caraterísticas que, por um lado, tendem a associar a corrupção ao poder político e económico e, por outro, a considerar o aparelho da justiça ineficaz para controlar o problema.
A corrupção é seguramente um dos grandes problemas sociais do nosso tempo. Com maiores ou menores índices de exposição, estamos muito provavelmente em face de um problema que tem acompanhado em permanência a própria evolução do homem. Porém, esta constatação, apesar de ter um certo sentido de fatalidade, não pode nem deve ser factor de desânimo, nem de inibição, relativamente a esforços de procura de projectos de maior e melhor controlo sobre o problema. Apesar de parecer utópico, entendemos que, com grande determinação e envolvimento de todos, será sempre admissível a melhoria das estratégias e das políticas tendentes a um controlo mais eficaz do problema. Só assim será possível caminharmos em direcção a modelos de organização social mais justos, mais transparentes, mais democráticos e mais fraternos, que confiram aos cidadãos maiores índices de informação, de esclarecimento, de igualdade no trato e de liberdade de acção e de decisão, ou seja que permita que cada homem sinta cada vez mais fazer parte de um todo íntegro.