Rui Henrique Alves, Visão on line,

Por estes dias e a propósito da aplicação do já famoso memorando de entendimento com a “troika”, têm vindo a lume algumas medidas relativas ao poder autárquico, desde fortes restrições à actividade de empresas municipais à reorganização política, administrativa e institucional àquele nível.
Falemos, assim, hoje de autarquias. Não de fraude nas autarquias, tema sempre muito do agrado daqueles que vêem os políticos, particularmente os autarcas, de uma forma muito negativa. Exercendo eu há vários anos funções autárquicas, como Presidente de uma Assembleia Municipal, tenho fundadas razões para não partilhar de tal visão. Não que todos os políticos sejam sérios e defensores do interesse público, mas a verdade é que não se podem tomar certos comportamentos particulares, ainda que em ascensão em anos recentes, pelo todo.
Falemos, antes, de expectativas e da necessidade de não as defraudar, ao nível de algumas das questões que referi inicialmente. Provavelmente nada provoca mais danos a um sistema político e económico que a criação de expectativas de mudança positiva que vêm posteriormente a revelar-se infundadas, mais ainda se vier a comprovar-se que a própria criação das expectativas era apenas um meio para disfarçar a inexistência de uma real vontade de mudar.
E as expectativas criadas no actual contexto são significativas. Passam, desde logo, pelo redesenho do actual figurino municipal português. Para uns, essa reconversão deverá dar-se apenas ao nível das freguesias, com extinções, fusões e outras alterações. Julgo que todos estaremos de acordo com a sua necessidade: é possível o Estado exercer, ao nível da freguesia, as suas funções, quando estas têm uma dimensão ou demasiado elevada ou demasiado reduzida, quando são mais de 4000, etc?

Para outros, há necessidade de ir mais longe e proceder igualmente ao redesenho do mapa dos concelhos. Naturalmente, os problemas de ordem concreta são aqui ainda mais difíceis de resolver, em particular a existência de força política para decretar a extinção ou a fusão de concelhos. Mas, numa altura em que a necessidade de conter custos, sobretudo os menos úteis, é cada vez maior e é igualmente maior a obrigatoriedade de conseguir uma dimensão acrescida, capaz de produzir maior eficiência, talvez devesse ser uma das ideias mais relevantes a discutir e a levar adiante.
No mínimo, haverá que redefinir as questões ligadas com a (falta de) articulação intermunicipal, como forma de evitar erros e exageros do passado recente que determinaram elevados custos com sobrecarga no futuro. Não será preciso muito para perceber do que falo: bastará pensar, por exemplo, na quantidade de infraestruturas que muitos concelhos vizinhos construíram individualmente, quando a lógica diria que deveriam ser partilhadas. Pense-se, por exemplo, em piscinas municipais, estádios municipais, casas de cultura, etc., quantas vezes situados a curtas distâncias e basicamente abrangendo (em teoria) bastante população comum. Na falta da tal articulação supramunicipal, até motivos bem negativos, desde a simples inveja perante o que o vizinho tem até situações graves de “ligações perigosas” poderiam ter concorrido para a ineficiência.
Uma outra área por onde passam as novas expectativas respeita à redefinição institucional do poder municipal. Voltaram a surgir, por estes dias e pela voz do Ministro da tutela, propostas já bastante discutidas num passado recente, mas que a negociação política entre PS e PSD nunca deixou ir adiante. Refiro-me ao modo de eleição dos órgãos municipais e à repartição de competências entre eles.
Fruto em grande parte da minha experiência autárquica, há muito que considero que deveria existir apenas a eleição para a Assembleia Municipal (AM), com o cabeça de lista do partido mais votado a tornar-se Presidente da Câmara e a escolher (e submeter à AM) a sua equipa, em lugar das actuais duas votações, para a Câmara e para a Assembleia.
Deste modo, seria possível aumentar a eficiência a, pelo menos, cinco níveis. Desde logo, pela simplificação das próprias eleições. Em segundo lugar, pela melhoria da gestão: afinal de contas e recuando não muitos meses, alguém poderia conceber um governo liderado por José Sócrates que tivesse obrigatoriamente como ministros Manuela Ferreira Leite, Paulo Portas, Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã?
Depois também pela possibilidade de mais fácil responsabilização pelas decisões: num Executivo mais coeso, deixa de ser possível atribuir a culpa aos “outros”. Ainda pela facilidade de troca de vereadores, caso se mostrassem incompetentes ou inadequados ao lugar: actualmente, como são directamente eleitos, não podem ser substituídos pelo chefe da equipa. Finalmente, porque, a par de tais modificações, teria de existir um reforço substancial dos poderes de fiscalização e debate das AM, cuja composição também teria de ser alterada (terminando provavelmente os lugares de inerência), levando-as a assumir de facto o lugar cimeiro na estrutura política municipal que a lei lhes consagra.
Tudo isto exige obviamente vontade política e confronto com interesses eventualmente significativos. Mas vencer esse confronto, com vontade, permitirá não defraudar expectativas e contribuir para o absolutamente necessário esforço do País em “não falhar”.