Carlos Pimenta, Visão on line,
1. A saúde é uma actividade económica cada vez mais relevante, nomeadamente nas economias desenvolvidas. É o resultado, entre outros aspectos, da melhoria do nível de vida dos cidadãos, do envelhecimento da população, do exercício da cidadania e dos grandes progressos na Medicina. Esta, continuando a preocupar-se com a cura, cada vez mais promove o comportamento de prevenção, certamente correcto cientificamente, indubitavelmente mais rentável. Pode também ser influenciado por um marketing agressivo que muitas vezes assume a forma de “discurso científico”, de “cuidado com a saúde pública”, de “informação ao público”.
Além disso o sector da saúde tem impactos decisivos no desenvolvimento humano e no bem-estar social. É um pilar insubstituível no desenvolvimento económico-social e no combate à pobreza. Milhões de vidas dependem da sua evolução.
Os dados (retirados de World Health Statistics 2011) demonstram a sua importância económica, assim como a relevância da intervenção pública:
• Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) as despesas em saúde representaram, em 2008, 8,5% do produto interno bruto dos 193 países que a constituem, representando um aumento de 0,2 pontos percentuais em relação a oito anos antes. Admitindo igual percentagem no ano transacto, as despesas em saúde teriam atingido em 2010 o montante de 5.347.288 milhões de dólares.
• É nos continentes americano e europeu que as percentagens de despesas de saúde são mais elevadas em percentagem dos respectivos produtos internos: 12,6% e 8,5% respectivamente. Também é aí que são mais elevadas as despesas médias anuais por habitante (em dólares, à paridade do poder de compra): 3.005 e 2.087, respectivamente, contra 899 para o conjunto dos países.
• O Estado tem sempre, e também em 2008, uma importância crucial nas despesas de saúde: 60,5% para o conjunto dos países; 73,7% na Europa, sendo essa a região com maior participação pública.
2. Se é uma prática habitual de investigação para encontrar a fraude é “seguir o dinheiro”, não será de espantar que sejam encontradas muitas ilicitudes nas actividades ligadas à saúde, um sector de grande extensão, pleno de ramificações privadas e públicas, de negócio e investigação científica, de organização nacional e internacional, com um conjunto de empresas multinacionais controlando o mercado. Essas ilicitudes passam
• pelas actividades ilegais, parte da economia paralela (ex. tráfico de órgãos humanos),
• pelo roubo (ex. de equipamentos, de medicamentos, de conhecimentos),
• pelo registo abusivo de patentes (ex. registando em nome de empresas conhecimentos tácitos milenares utilizados pelos povos nos seus tratamentos),
• pela falsificação e contrafacção (ex. fabricação e comercialização de medicamentos falsos ou falsificados, que em algumas regiões representa 20% do mercado),
• pela fraude (ex. invenção de doentes e instituições, falsificação de documentos, transferência indevida de verbas, manipulação contabilística)
• e pela corrupção (ex. oferta de favores em troca de certos procedimentos médicos; influenciar a decisão das políticas de saúde dos Estados e das organizações internacionais).”
Segundo diversas estimativas a corrupção, que é apenas uma parte das ilicitudes, situar-se-á em cerca de 15% das despesas mundiais com a saúde.
Stiglitz ao referir as formas modernas de corrupção (que passam pelas contribuições para as campanhas políticas) recorda que “as empresas farmacêuticas gastaram 759 milhões de dólares para influenciar 1400 leis do Congresso [americano] entre 1998 e 2004; elas são as campeãs do lóbi, quer pelos montantes envolvidos quer pelo número de lóbistas que envolvem (3000)” (Making Globalization Work). Estes dados ainda válidos hoje, quiçá ampliados, ressaltam a importância da manipulação ilícita no sector da saúde, a subestimação das vidas humanas em detrimento dos negócios de todo o tipo.
3. Se acontecimentos recentes no nosso país poderiam servir de exemplo de fraudes no sector da saúde (“Estima-se que as fraudes custem ao Estado mais de 80 milhões de euros por ano.”) preferimos recordar dois acontecimentos, um deles bem conhecido por todos, que talvez não sejam fraude, mas onde a falta de esclarecimento ou os conflitos de interesse parecem apontarem nesse sentido.
(A) Em 2008 o prestigiado Prémio Nobel da Medicina foi atribuído a duas descobertas, sendo uma delas a do vírus do papiloma humano causador de cancro. Na página oficial do Prémio Nobel associa-se o vírus ao cancro cervical; segundo a Wikipédia “O vírus do papiloma humano (VPH ou HPV, do inglês human papiloma virus) é um vírus que infecta os queratinócitos da pele ou mucosas, e possui mais de 200 variações diferentes. A maioria dos subtipos está associada a lesões benignas, tais como verrugas, mas certos tipos são frequentemente encontrados em determinadas neoplasias como o cancro do colo do útero, do qual se estima que sejam responsáveis por mais de 90% de todos os casos verificados.”
Este prémio Nobel acontece quando em muitos países se falava na vacinação massiva das jovens para prevenção do cancro do colo do útero. Uma campanha que certamente poderia ser considerada importante, mas que era mais rápida e intensa que outras campanhas que também se justificariam. Curiosamente essas vacinas vieram a revelar diversos efeitos secundários indesejáveis e graves e a campanha foi-se dissipando.
Quando da atribuição do prémio levantaram-se vozes afirmando existirem conflitos de interesse em elementos do júri que atribuiu o prémio. Alguns órgãos de informação chegaram mesmo a levantar a hipótese de um laboratório associado à referida vacina ter pago (lóbi? corrupção?) para que o prémio fosse atribuído a Harald zur Hausen, o seu inventor.
(B) O ano de 2009 foi o ano da Gripe A (H1N1). Depois de um primeiro ensaio quando da “Gripe das Aves” (H5N1) o pânico com a gripe A foi violento e mundial. A Organização Mundial de Saúde levantou o problema, manteve sobre o assunto uma campanha científica e propagandística mundial, foi aumentando os níveis de gravidade da propagação da doença, obrigando dessa forma os Estados a empenharem-se activamente na sua protecção. Primeiro houve uma corrida às farmácias na aquisição do único remédio milagroso (Tamiflu, dos laboratórios Roche, inicialmente criado para a gripe das aves), depois a todo o tipo de protecções e desinfectantes. Depois houve gastos enormes dos Estados na aquisição de vacinas, de utilização muito escassa (e controversa) em relação ao previsto na fase de pânico.
Se a gravidade da doença foi reconhecida, já não o foi o alarmismo gerado, tomando como referência outras doenças igualmente graves, as “normais” epidemias anuais de gripe. Quando já este ano se registaram casos de gripe com o vírus H1N1 já tudo foi considerado “normal”.
Diversas instituições e autoridades mundiais levantaram a questão da desproporção da acção da OMS em relação ao perigo efectivo da Gripe A. O Conselho da Europa manifestou muitas dúvidas sobre a actuação daquela organização, tendo algumas vozes considerado que estávamos perante um dos maiores escândalos do século. Afirmava um grupo de deputados do Conselho da Europa: “A fim de promover as suas drogas patenteadas e vacinas contra a gripe as empresas farmacêuticas influenciaram cientistas e agências oficiais para alarmar os governos em todo o mundo e fazê-los despender orçamentos da Saúde em campanhas de vacinação, ineficazes, que expuseram milhões de pessoas saudáveis a efeitos colaterais”. Não passou despercebido que a Roche e a GlaxoSmithKline eram laboratórios em dificuldades económicas, inteiramente superadas com o pânico da gripe A. Também outros parlamentos, como por exemplo o Russo, exigiram o esclarecimento das relações entre o OMS e a indústria farmacêutica.
Curiosamente no relatório da OMS de 2009/2010 faz-se referência à Gripe das Aves (H5N1) mas não à Gripe A (H1N1).
Continua a faltar um esclarecimento cabal sobre o que efectivamente se passou.
4. Perante este panorama não é de estranhar que a OMS, enquanto instituição da Organização das Nações Unidas, levante periodicamente a bandeira da luta contra a corrupção, em especial, e as diversas ilicitudes, em geral.
Contudo a tendência hoje dominante de evolução do financiamento da instituição parece apontar exactamente em sentido contrário. Uma instituição da ONU, com a influência que tem, movimentando dominantemente dinheiros públicos tende a ser predominantemente financiada por instituições privadas. Foi nesse sentido a intervenção da sua directora-geral, Margaret Chan, na 64ª assembleia anual da OMS e muitas das decisões aí assumidas.
Como afirmam alguns “a questão reside em saber se, em vez de uma agência multilateral de saúde pública, a OMS não irá transformar-se numa agência privada ao serviço dos interesses de meia dúzia de doadores” (em “Uma OMS cada vez mais privada”, Courrier, Ago. 2011).
Claro que esta privatização é acompanhada de “papas e bolos para enganar os tolos”, ou para alguns se enganarem a si próprios: “garantir a independência da OMS”, “definir prioridades”, “proceder a auditorias independentes”.
Estamos, isso sim, perante mais uma deliberada entrega de poder público às empresas, aludindo dificuldades financeiras. Cada criança que nasce está, desde logo, parcialmente empenhada a empresas privadas.
Liberdade, democracia, cidadania? Apenas fogachos para algumas cinzas brandas!