Mariana Costa, Visão on line,

Os problemas da interpretação do contrato e da protecção do contraente mais fraco colocam-se com particular acuidade nos chamados contratos de adesão.
Os contratos de adesão são um fenómeno relativamente recente na história do direito privado e caracterizam-se por limitar a liberdade de determinação do conteúdo contratual de uma das partes, à qual cabe apenas a escolha entre aderir ou não aderir a cláusulas do contrato previamente elaboradas pela outra parte e não sujeitas a negociação.
Estes contratos de adesão apresentam como principal vantagem a racionalização do processo negocial, tornando-o mais célere e menos dispendioso. Porém, são uma distorção face à visão clássica da celebração do contrato como culminar de um processo de negociações preliminares, nas quais as partes ponderam interesses e meios para os alcançar, até chegarem finalmente a um acordo que ambas entendem adequado. As suas principais desvantagens prendem-se com o facto de muitas vezes acarretarem uma oneração mais gravosa da parte economicamente mais débil e de adoptarem uma linguagem técnica dificilmente acessível à generalidade da população (veja-se o exemplo clássico das condições gerais de um mero contrato de depósito bancário).
Foi neste contexto jurídico que nasceu o contrato de seguro Multi-Riscos de um armazém, celebrado entre A, B, C e D, todos residentes na Guarda e a Seguradora E, com sede em Lisboa.
Num certo dia de Dezembro, a cobertura do referido armazém desabou, devido a queda e acumulação de neve.
Tendo sido accionado o seguro, a Seguradora veio informar que, nos termos da cláusula 5.ª das condições gerais da apólice, sob o risco “tempestades” apenas estavam incluídos danos causados em consequência de “tufões, ciclones, tornados e toda a acção directa de ventos fortes ou choque de objectos arremessados ou projectados pelos mesmos (…)”. Em consequência, os danos sofridos com a queda de neve não estavam cobertos pelo seguro contratado.
Grande terá possivelmente sido a surpresa de A, B, C e D ao descobrirem que uma tempestade de neve na Guarda não constitui necessariamente uma tempestade em Lisboa; surpresa essa certamente temperada pela segurança de se saberem protegidos contra tufões, ciclones e tornados, fenómenos meteorológicos até hoje expectados naquela zona do país!
Bem estiveram o Tribunal da Relação de Coimbra e o Supremo Tribunal de Justiça .
Da interpretação da supracitada cláusula 5.ª do contrato de seguro parece, de facto, resultar que a queda de neve que levou ao desabamento da cobertura do armazém não se integra na noção do risco coberto sob a rubrica “tempestades”: não se provou que o desabamento tenha sido determinado pela acção directa de ventos fortes, tufões, ciclones ou tornados.
No entanto, o ordenamento jurídico português contém especiais medidas de protecção do aderente de um contrato de adesão, entre as quais se encontra o direito a que lhe sejam comunicadas na íntegra as condições gerais do contrato, comunicação essa que “deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária (…)” (artigo 5.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro na sua redacção actual).
Ora, atendendo a que para um cidadão normal a queda acentuada de neve com efeitos destrutivos se enquadra no conceito de tempestade (e mais ainda para um residente da região da Guarda), é razoável pressupor que no momento da celebração do contrato de seguro A, B, C e D estivessem convencidos que tal fenómeno caberia sob a rubrica “tempestade”, excepto se lhes fosse comunicado o contrário, o que não ficou provado em tribunal.
Em consequência, entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra (com a anuência posterior do Supremo) considerar como inexistente e excluída do contrato de seguro a famosa cláusula da “tempestade”, aplicando ao caso em apreço o conceito vulgarmente aceite de tempestade e integrando nele os factos ocorridos.
Afinal, não querendo servir de desculpa ou pretexto para desculpa, qual é a percentagem de aderentes que lêem as condições gerais do contrato antes de a ele se vincularem (não esquecer o actualmente clássico clique com o botão esquerdo do rato na caixa do “li e aceito”)? E quanto dessas condições gerais é efectivamente compreensível ao cidadão comum a quem se destinam?