Carlos Pimenta, Visão on line,
1. É fim-de-semana. Enquanto os filhos rebolam na relva e inventam jogos, Alberto e Carla jogaram ténis, tomaram duche, descontraíram-se no jacuzzi, vestiram-se, colocaram o gelo no copo de whisky, espraiaram-se no sofá, lançaram um olhar aos filhos, respiraram o ar oxigenado, miraram o lago artificial e, mais ao longe, o verde do campo de golfo.
− Está-se bem! Estou feliz com esta nova casa. Espaçosa, com uma arquitectura única, num local aprazível, com muito espaço e segurança para os miúdos, afastada do bulício e tão próxima de tudo.
Alberto olhou o relógio, viu os seus últimos e-mails no iphone e voltou a fixar-se no difuso infinito.
− Quem conheceu isto, longe de tudo, apenas garantindo a parca sobrevivência dos que escarafunchavam estas terras; nunca conseguiria imaginar o paraíso em que esta região se tornou, prosseguiu Carla.
2. Ela nunca conseguiria imaginar, mas Eng. Ricardo conseguiu-o, com maestria. De facto todos aqueles terrenos eram agrícolas e pouco produtivos. Garantia uma agricultura de sobrevivência, dirigida essencialmente para o mercado local e regional. Terras passadas de geração em geração, mantidas por apego à tradição e ao animismo. O cargo político que tinha, a trama de relações pessoais e empresariais que aquele lhe facultava e a sua sistemática manipulação da informação permitiram-lhe que fosse tomada uma decisão fundamental para o país – obviamente para o país, logo para todos! −, que mudaria radicalmente aquela região. Lisboeta de nascimento e coração, mais apaixonado pelo poder que pelo amor, nunca se preocupou em saber quais as consequências das decisões em curso sobre os habitantes da região. O “país” e o “desenvolvimento” são mais importantes que essas minudências.
Foi no cumprimento do seu dever a pensar no nosso desenvolvimento que a decisão foi tomada. Como em todas as opções daquele tipo, tudo deveria manter-se confidencial até à confirmação da decisão, até à plena garantia de que os impactos ambientais, os financiamentos comunitários, os relatórios técnicos, o cabimento orçamental e outras burocracias estivessem resolvidos. Confidencial até ao anúncio público. O Eng. Ricardo estava proibido politica, legal e eticamente de utilizar aquela informação.
O Eng. Ricardo gostava do politicamente correcto, mas não era “estúpido”. Defendia o país, mas este tanto o englobava a ele como aos camponeses da região. Quem tinha tomado a decisão correcta que ia alterar a região de Baguim de Alforges foi essencialmente ele, e não os que lá viviam secularmente e que nunca manifestaram empreendorismo, capacidade de alterar a sua situação. A bem da nação sim, mas que também o seja a bem dele e não só dos proprietários da região. Quando o projecto for para frente os terrenos valorizar-se-ão imenso. Talvez o preço do metro quadrado multiplique por quinhentos ou mil.
Resolveu conversar com o Dr. Perestrelo, pessoa de fino trato e grossos capitais, conhecedor da subtileza e temente da lei, proprietário de várias empresas, umas radicadas em Portugal outras em “praças financeiras internacionais”. O jantar correu bem. A mensagem foi passada sem propriamente ter sido dita. O Dr. Perestrelo não se esqueceria dele.
3. A empresa Sonhos & Cª. resolveu comprar todos os terrenos da região. Terrenos agrícolas sem grande valor, sem utilidade relevante, mas que serviam para os seus “projectos loucos”, como se dizia na povoação de Baguim. Foi uma operação lenta, feita directa ou indirectamente, utilizando vários intermediários, sem levantar suspeição, lançando boatos infundados, fazendo aqui e ali pressão junto de alguns mais renitentes. Muitos já lhe adivinhavam a falência, mas o que interessava é que já tinham recebido o seu dinheiro.
E a falência aconteceu. Sonhos & Cª. não superou as suas dificuldades económicas, vendeu os terrenos à empresa Beautiful Home, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, na região das Caraíbas, representada em Portugal por um escritório de advogados. Porque os terrenos continuavam a não ser urbanizáveis e porque as dívidas aos credores colocavam a empresa Sonhos & Cª. com pouca capacidade de manobra, a transacção foi realizada por um valor baixo.
Beautiful Home é uma empresa essencialmente de capital “português” (esta tendência que continuamos a ter de que o capital tem nacionalidade!), pertencendo a um conjunto de empresas, geridas de forma autónoma e com poucas ligações visíveis à empresa-mãe, cujo accionista principal é um banco.
4. Finalmente o Governo anunciou o conjunto de medidas que vão alterar completamente as condições de vida em Baguim de Alforges, em toda aquela vasta região. De região isolada e agrícola passará a ser urbana, integrada na Europa e no mundo. Os preços dos terrenos multiplicaram por quatrocentos e a procura de habitações tenderá a tornar-se explosiva. A Beautiful Home decidiu fazer um vasto conjunto de urbanizações de luxo nos terrenos adquiridos, a que não faltará um lago artificial, um campo de golfo, um conjunto de serviços, incluindo assistência médica permanente.
Contrata a Construções & Serviços SARL, uma outra empresa do grupo, para coordenar a construção, desde o projecto de arquitectura aos acabamentos. Um contrato chave-na-mão que exige qualidade e celeridade. Tratando-se de uma empresa do mesmo grupo, partilhando os interesses do mesmo capital haverá maior possibilidade de acordar preços de forma a minimizar a carga fiscal de ambas. Melhor, de todas as empresas envolvidas.
Construções & Serviços subcontrata profissionais liberais e empresas de estudos e construção civil para a realização de diversas fases do projecto. O fundamental é que cumpram os prazos, que façam o serviço com qualidade -- para o garantir estarão sempre sob vigilância. Se utilizam imigrantes ilegais, cumprem ou não os seus compromissos legais, é problema que não lhe diz respeito. O que vai constar do seu relatório de responsabilidade social nada tem a ver com isso. Dirá respeito às condições ambientais, à melhoria da qualidade de vida das populações locais e outras coisas parecidas. Porque haveria de analisar as condições de trabalho nas empresas contratadas se também não analisa o perfil e integridade dos accionistas, a proveniência do dinheiro investido nas acções da empresa?
5. Alberto e Carla trataram da compra do seu apartamento com a Jardins de Alforges Lda. Com escritório em Madrid e sucursal junto do empreendimento, mas cuja sede social se encontra nas Ilhas Caimão, conjunto de ilhotas nas Caraíbas, território britânico, possuindo provavelmente a maior densidade de empresas por metro quadrado, muitas delas com a dimensão de uma caixa de correio. É uma das várias empresas a quem Beautiful Home subcontratou a mediação imobiliária, tendo todas elas em comum sócios e capital. Alberto, que acompanhou mais de perto os procedimentos de aquisição não teve, contudo, qualquer trabalho adicional.
Só sabe que já não pôde escolher a habitação que mais lhe agradava, porque já estava vendida e que actualmente todas as residências estão ocupadas. O sucesso comercial foi enorme. A crise imobiliária é uma realidade, mas não o é para os complexos habitacionais de grande luxo. Os lucros das empresas envolvidas em alguma fase do empreendimento foram enormes, excepção feita, como referimos, à Sonhos & Cª.
6. Embora “amigos amigos, negócios à parte”, os “amigos são para as ocasiões” e estas brotaram da “inconfidência” de Eng. Ricardo e de Sonhos & Cª. ter servido de tampão entre a ilegalidade e a legalidade. Não é, pois, de estranhar que Jardins de Alforges Lda e outras empresas que procederam à venda do empreendimento, tivessem que pagar “serviços intangíveis” à Marketing Love, localizada em Gibraltar, “território britânico ultramarino” cravado no sul de Espanha. É que o proprietário desta empresa “responsável” pela concepção da marca, símbolos e campanha publicitária é o empresário falido da Sonhos & Cª.
É aquela empresa que fará uma aplicação financeira de dois milhões de dólares a favor da conta que Eng. Ricardo tem nas Ilhas Karibati, no Oceano Pacífico. Estas ilhas estão em desaparecimento progressivo devido ao aquecimento global e à subida das águas dos Oceanos, mas as contas bancárias não correm o risco de se afundarem.
Todas as histórias, mesmo quando não começam por “era uma vez” comportam os seus ensinamentos. Cada um que os tire deste entrelaçamento entre economia subterrânea, economia ilegal e economia oficial, entre procedimentos legais e ilegais. Uma história da época da globalização com paraísos (offshores) opacos, e renitentes à colaboração, espalhados pelo mundo, com intermediações e desfasamentos temporais susceptíveis de apagar os traços das ilicitudes. Uma história digna da globalização: com empreendores, com internacionalização do capital, com praças financeiras internacionais e outras coisas que tais. Apenas os habitantes seculares de Baguim de Alforges são uma “carta fora do baralho”, mas por que razão ainda nos deveríamos recordar deles?
Cada um que retire as suas lições de moral. Pela nossa parte apenas deixamos duas perguntas:
• No 1º Artigo do Tratado da União Europeia afirma-se que o “tratado assinala uma nova etapa no processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as decisões serão tomadas de uma forma tão aberta quanto possível e ao nível mais próximo possível dos cidadãos”, parte do desejo de “aprofundar a solidariedade entre os seus povos, respeitando a sua história, cultura e tradições”, de garantir o “Estado de direito”. Será esta bondade de afirmações compatível com a concorrência desleal entre países, a falta de transparência e o apoio aos “mais fortes” e manipuladores permitido pelas “praças financeiras internacionais”, as offshores?
• Muitos sectores da sociedade, perante a dificuldade de se ser (reconhecido como) corrupto em Portugal, têm defendido uma “lei do enriquecimento ilícito”, uma lei que exija que alguns tenham que justificar a origem da sua riqueza, inexplicável perante os rendimentos legalmente usufruídos. Estamos convencidos que ajudaria a esclarecer algumas situações e que não é inconstitucional. Contudo não seria, como afirmou Carlos Anjos na Grande Entrevista do Rádio Clube, um “presente envenenado”? Que validade efectiva teria uma tal lei com a existência de offshores e liberdade da sua utilização? Que validade efectiva teria sem haver antes a equiparação do direito de usufruto ao direito de posse? Não seria mais uma forma avulsa de combater a corrupção e similares, sem pôr em causa o sistema em que aquela se insere?
Era uma vez …