José António Moreira, [types field="pub" class="" style=""][/types],

Em pouco mais de duas semanas, a equipa da “troika” – FMI, UE e BCE – fez um diagnóstico relativamente exaustivo das principais debilidades do país, prescrevendo genericamente os remédios para as aliviar e calendarizando a respectiva toma. A virtualidade desse trabalho, que ocupa meras 35 páginas de texto, não está tanto nas grandes novidades que encerra – pois os traços gerais da “doença” há muito que eram conhecidos –, mas no facto de impor à nossa classe política a obrigatoriedade de finalmente encarar de frente os problemas e, muito especialmente, concretizar as reformas prescritas para os debelar.

Na campanha para as eleições legislativas de 2009, lembro-me da candidata Manuela Ferreira Leite, referindo-se a algumas das reformas de que o país necessitava, ter afirmado que a única forma de poderem ser implementadas passava por se “descontinuar” a democracia por seis meses. Todos estarão lembrados da reacção pública de indignação à alegoria usada para simbolizar a dificuldade de implementar reformas profundas em Portugal, devido ao leque de interesses instalados e ao calculismo dos políticos quando têm que adoptar medidas que desagradam aos seus eleitores. Pois bem, aquilo que o país tem actualmente pela frente, com as imposições da “troika”, pode ser comparado a uma “descontinuidade sintética” da democracia, dado que, por um par de anos, deixaremos de possuir a possibilidade de definir em toda a sua plenitude o nosso devir colectivo. E se isto nos pode causar algum desconforto, não podemos deixar de considerar que a situação, por mais negra que agora nos pareça, tende a encerrar em si mesma nuances que, se devidamente valorizadas, ajudam a suavizar os tons negros com que a pintamos. Significa isto que a perda de soberania que está subjacente ao acordo com a “troika” pode ser vista como o preço a pagar para que se implementem reformas estruturais de que o país há muito carecia e sem as quais dificilmente descolaria do “rame-rame” em que se vinha arrastando.

O acordo com a “troika” inclui várias medidas de reforma da Administração Pública (AP). Em grande parte tais medidas passam por reduzir a respectiva estrutura hierárquica – vulgo redução dos cargos dirigentes – e o número de efectivos. Porém, há um domínio que esse acordo não contempla, pelo menos de forma directa, se bem que eu considere tratar-se de medida da maior importância: a despolitização da AP, com o fim das nomeações de confiança política.

Quatro ordens de razões justificam a minha aversão a tal tipo de nomeações. Primeiro, contraria o princípio do provimentos dos lugares por mérito, que devia ser a pedra-base da “res publica”. Segundo, cria instabilidade na AP, pois sempre que há alternância do(s) partido(s) no poder isso implica uma considerável mexida nos cargos de chefia, mesmo nos de nível intermédio, com consequências negativas na eficiência daquela. Terceira, retira a capacidade a quem efectua tal tipo de nomeações de exercer efectivo controlo e poder disciplinar sobre quem é nomeado, pois uma simples repreensão deste significaria assumir que se fez a escolha errada, o que em termos de calculismo político não é atitude fácil de adoptar. Quarta, retira ao nomeado autonomia de actuação e a capacidade de isenção que tem de possuir para poder cuidar devidamente da “res publica”. Esta última razão tem subjacente que os danos da sua não consideração podem ser particularmente danosos para o país quando se trata de nomeações para órgãos de supervisão, ou para organismos que, indirectamente, controlam a actuação do Governo.

Mexer neste domínio implica uma mudança profunda, um novo modo de fazer política em Portugal. Mas já que vamos ter de mudar de vida, eliminando vícios antigos – será que vamos? Não me apercebi que algum dos partidos que assinaram o acordo o tenha dito abertamente aos eleitores –, talvez fosse de aproveitar a ocasião para reformar também o modo como é efectuado o provimento de lugares da AP.

Porém, tendo em consideração que neste período que antecede as eleições legislativas nenhum partido disse uma palavra que fosse sobre este tipo de medidas, não me parece que se devam alimentar grandes esperanças de que algo neste domínio possa vir a ser implementado. Assim sendo, a AP continuará ser usada pelos políticos como um instrumento de distribuição de mordomias às suas clientelas. Que pena que a “troika” não tenha escrito um paragrafozito a este propósito …