António João Maia, Visão on line,

“Quando se navega sem destino, nenhum vento é favorável”, é máxima associada a Séneca (filósofo que viveu em Roma durante o auge do Império Romano, entre os anos 4 a.C. e 65 d.C.), que põe em evidência uma noção de grande importância, que compreende a necessidade de ao longo das nossas vidas irmos definindo objectivos e, correlativamente, as estratégias para os ir alcançando.
Apesar de não ser propriamente grande especialista nos territórios da economia ou da gestão, correndo por isso mesmo o risco de fazer afirmações tecnicamente menos correctas, não quero no entanto deixar de tecer e partilhar algumas reflexões, necessariamente de carácter empírico, que considero importantes nos tempos presentes relativamente à realidade que atravessamos (por vezes interrogo-me se não será a própria realidade que nos está nos atravessar?).
O exemplo mais simples e porventura mais palpável que podemos encontrar acerca da importância de definirmos objectivos e delinearmos as correspondentes estratégias para os alcançar, está, para não irmos mais longe, em cada um de nós, nomeadamente na relação que vamos mantendo com o contexto da nossa vida. Se fizermos agora, neste preciso momento, um pequeno exercício de auto-reflexão, conseguimos identificar rapidamente um conjunto de objectivos (mais ou menos realistas e a cumprir em futuros mais ou menos próximos) que nos propomos ir alcançando em função de estratégias que consideramos ajustadas e que vão dependendo das circunstâncias que se nos vão deparando a cada momento.
Digamos, traduzindo por termos mais mundanos, que os objectivos são metas que desejamos alcançar e as estratégias são os caminhos que vamos trilhando para lá chegar. O exemplo mais simples é de uma viagem. Imaginemos, por exemplo, que nos encontramos em Lisboa e pretendemos ir ao Porto. Chegar ao Porto passa a ser o objectivo, e a forma como iremos fazer o percurso entre as duas cidades, a estratégia. Importa ainda que se conheçam as circunstâncias em que nos encontramos para que possamos escolher a melhor estratégia. Assim, se se trata por exemplo de uma deslocação em trabalho, que nos obrigue a estar no Porto num determinado momento, teremos de escolher a forma de deslocação mais apropriada em função desse critério. Poderemos utilizar o avião, o comboio ou o automóvel, enfim o meio de transporte que melhores garantias nos dê de estarmos lá, no local, dia e hora aprazados. Porém, se a viagem se projecta num contexto de passeio de fim-de-semana ou mesmo de férias, a estratégia será, muito provavelmente, diferente. Utilizaremos pela certa o nosso automóvel, para evitarmos limitações de vária ordem, nomeadamente de horários. É também muito natural que seleccionemos pontos intermédios para paragem, para almoçar num determinado local, ou até para visitar uns familiares que vivam algures a meio do percurso. De uma forma ou de outra, havemos de alcançar o nosso objectivo, que é chegar ao Porto.
Obviamente que este processo não é assim tão linear, até porque por vezes cruzamo-nos com factores imponderáveis, de todo não previstos nem previsíveis, que nos obrigam a ter que alterar tudo, como por exemplo termos de ficar retidos horas a fio devido a um acidente na estrada. Porém e apesar de não ser uma aritmética constante, em que dois mais dois nem sempre são quatro, julgo que possamos facilmente aceitar que, pelo menos em termos abstractos, a vida de cada um de nós tende a decorrer dentro de um fio condutor que obedece a uma lógica com estas características. Vamos definindo diversos objectivos, de preferência realistas (alcançáveis), das mais diversas ordens (na escola, no trabalho, nas férias, nas compras, na relação com os outros, etc.), a alcançar em futuros mais ou menos distantes, e, em cada dia, vamos dando pequenos passos no sentido de os ir concretizando. É assim a vida de cada um de nós, individualmente e a das nossas famílias, e deverá ser assim também relativamente aos grupos de que fazemos parte, nomeadamente nas organizações onde trabalhamos ou onde desenvolvemos outra qualquer actividade, ou simplesmente com que nos identificamos (o clube de futebol, a associação cultural e recreativa, etc.) e na vida da própria sociedade de que fazemos parte, ou ainda, porque não referi-lo (sobretudo num tempo de globalização marcado pela quebra de fronteiras), numa região do globo ou, utopia das utopias, relativamente à própria humanidade, numa espécie de desígnio do homem ou “sentido da vida”.
É evidente que para lá de poder não ser assim tão linear, como já se disse, este processo tende ainda a ser tanto mais complicado quanto mais alargada seja a dimensão dos grupos e das organizações que consideremos. Quanto mais pessoas estiverem envolvidas, mais difícil se torna a estabilização de objectivos realistas a alcançar pelo grupo, o alinhamento das vontades das pessoas envolvidas em função de tais objectivos (entroncam aqui, por exemplo, aspectos tão importantes como os da liderança, ou as expectativas sociais) e a definição e implementação das estratégias de acção do grupo, que hão-de permitir alcançar tais objectivos.
A verdade porém é que muito provavelmente, em reflexo dos efeitos profundos do processo de globalização, estamos, um pouco por todo o mundo, a atravessar um período histórico em que os sujeitos são capazes de reconhecer os seus próprios objectivos e estratégias, bem como os das suas famílias e porventura dos grupos de que fazem parte, parecendo de reconhecimento mais improvável os objectivos e as estratégias de âmbito nacional. Se questionarmos um qualquer cidadão do mundo, ou muito me engano ou provavelmente não saberá dizer para onde o seu país se dirige, nem, pelo menos, para onde pretende dirigir-se, que caminhos tenciona percorrer para lá chegar, nem que dificuldades possa encontrar nessa caminhada.
É afinal um dos reflexos do processo de anomia que identifiquei em textos anteriores e que tem caracterizado as profundas mudanças nos modelos de organização económica, política, social e cultural. Já não reconhecemos os modelos que contextualizaram a formação da nossa identidade social, mas ainda não somos capazes de identificar aqueles que os estão a substituir.
A ser verdadeira esta percepção, vão-nos restando apenas os objectivos e estratégias individuais e de grupo, ficando em suspenso aquela parte dos objectivos e das estratégias, que também devem existir, que derivam ou que se alicerçam nos de âmbito mais alargado. É que são eles, os de âmbito mais alargado, que de alguma forma nos ajudam a olhar para mais longe, a podermos esboçar algumas linhas de horizonte mais longínquo, a podermos antecipar, com um mínimo grau de certeza, os quadros futuros para nós próprios e sobretudo para os nossos filhos. São esses quadros que criam expectativas positivas de acção e de certa forma nos impelem com confiança para o futuro, numa certa convergência de objectivos e de estratégias.
Sinto estarmos todos numa espécie de “jangadas de pedra”, parafraseando José Saramago, que vão navegando mais ou menos à deriva, ao sabor dos ventos, das correntes e das marés, sem grandes rotas traçadas, dentro das quais vão viajando os povos correspondentes, cujos sujeitos se vão ajeitando da melhor forma possível, em função do ajeitamento uns dos dos outros e dos solavancos provocados pelo temporal que se vai acentuando precisamente através dos fortes ventos e da agitação do mar (causados pelas movimentações das “jangadas”, ou seja, pelo mundo em mudança profunda). Neste contexto, as barcas que não conseguirem definir rapidamente o seu rumo, ou seja que continuem sem definir os seus próprios objectivos e estratégias, correm alguns riscos de poderem vir a ser arrastadas para uma espécie de “naufrágio”.
Creio que está em nós (em todos nós e em cada um de nós), nas instituições, na sociedade civil, nas redes sociais, a capacidade para unirmos esforços tendentes à redefinição dos nossos objectivos comuns e das estratégias para os alcançar. Mais do que nunca, este parece ser um tempo em que necessitamos de o fazer.
Numa altura em que as relações e os modelos económicos, políticos, sociais e culturais se encontram em remodelação profunda um pouco por todo o mundo, presume-se particularmente importante que cada país entre numa espécie de processo de análise prospectiva de auto-reflexão objectiva e realista sobre o quadro das suas potencialidades de desenvolvimento sustentável naquelas áreas – aquilo que os gestores e universitários designam como a envolvente interna – e os quadros prospectivos de desenvolvimento dos restantes países e regiões do globo – a envolvente externa, representada nestas linhas pelos ventos, marés e correntes oceânicas –. Entre nós, este levantamento tem sido objecto de sucessivas reflexões, muitas delas acompanhadas pela comunicação social. Importa pois considerar de forma objectiva e isenta os diversos elementos conhecidos e outros que careçam de maior aprofundamento, e, com base nesses dados e nas expectivas das pessoas, dar forma ao processo de concretização de um quadro realista e de amplo consenso social, para que as vias de solucionamento da crise em que nos encontramos mergulhados dependam sobretudo de nós e sejam função e desígnio com que nos identifiquemos.
Termino com uma passagem de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol (ed. de 2008, da editora book.it, pág. 59), quando, em diálogo com o Gato de Cheshire e sentindo-se perdida, Alice lhe pergunta:
“- Poderias dizer-me, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?
- Isso depende muito de para onde quiseres ir – respondeu o Gato.
- Não me interessa muito para onde … – retorquiu Alice.
- Então, não importa para onde vás – disse-lhe o Gato.
- … contando que vá dar a algum lado – completou Alice, à laia de explicação.
- Ah, podes ter a certeza de que vai lá dar – disse o Gato –, mas só se caminhares o suficiente.”