Carlos Pimenta, Visão on line,
1. Assim como a natureza tem leis cuja violação põe em causa as condições de vida, também a sociedade tem regras e princípios de funcionamento que, quando violados, geram conflitos, situações irresolúveis, contradições, enfim rupturas.
Durante os últimos trinta anos o liberalismo económico gerou ideologia e funcionou como se fosse possível o jogo alquimista de “transformar latão em ouro”, agravar as desigualdades económicas, transferir os encargos do funcionamento da organização política da sociedade para os que menos têm. Os Estados acreditaram que os mercados financeiros eram o melhor local para se financiarem e que o podiam fazer como se não houvesse amanhã. Enfim o sistema financeiro desenvolveu-se muito para além do que a criação de rendimento permitia, criando simultaneamente circuitos paralelos de funcionamento, esquemas de fraude e corrupção.
As instituições sociais dominantes, numa harmonia canibalesca entre o económico e o político, esqueceram-se de que em algum momento as dívidas têm de ser pagas. Esqueceram-se da força imensa da vontade popular e que a resistência humana às desigualdades tem limites, que ela é tanto mais débil quando as injustiças e a imoralidade campeiam por todo o lado.
A ilusão de “transformar latão em ouro” gerou a crise que vivemos. As desigualdades e as injustiças geraram um ambiente social explosivo e as revoluções reapareceram. Crise e revolução, duas realidades que muitos sonhavam mortas e que aí estão a manifestar a sua força.
A fraude e a corrupção surgem neste duplo momento de ruptura: a crise, quando a distribuição de rendimentos exige produção, e a revolução, quando os homens sem voz exigem ser ouvidos e decidem fazer história.
2. A liberdade e a paz são fundamentos imprescindíveis da dignidade humana. A fome, o agravamento do custo de vida, o desemprego, a precariedade do emprego e os baixos salários afligem o corpo. A insegurança perante a doença, a incerteza do futuro, a renúncia do bem comum pelo Estado e as desigualdades sociais afligem a alma.
Os atentados à dignidade humana, os flagelos do corpo e as angústias da alma criam condições para dinâmicas sociais muito contraditórias: a resignação ou o inconformismo; a apatia ou a revolta. O caminho a seguir depende de uma multiplicidade de factores históricos que só depois de acontecerem poderão ser correctamente analisados. Uma faísca imprevisível pode ser o rastilho que traçará o caminho.
A faísca que acende o rastilho frequentemente beneficia da carga social negativa que a constatação da imoralidade comporta.
Em 1974, quando da Revolução Portuguesa, essa constatação da imoralidade irrompe no Programa das Forças Armadas: “considerando (…) que a sua [do MFA] acção se justifica (…) para o saneamento das instituições, para a moralização dos nossos costumes políticos (…)”; “O Governo Provisório lançará os fundamentos duma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivos a defesa dos interesses da classe trabalhadora e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida dos Portugueses”.
Surge igualmente no programa dos dois partidos então existentes. O Partido Comunista reafirma que “os objectivos fundamentais da revolução socialista são a abolição da exploração do homem pelo homem” (1974). O Partido Socialista condena violentamente essa mesma exploração, afirmação hoje de valor arqueológico: “O PS combate o sistema capitalista (…); o neocapitalismo [não] conseguirá instaurar uma sociedade inspirada pelos ideais da igualdade social, antes vai agravando, sob formas insidiosas, a exploração do maior número pela minoria. (…) [O PS]repudia enganadoras miragens de sociedades que só formalmente se apresentam como democráticas, e se definem como sociedades de consumo, quando na realidade reforçam a desigualdade entre os homens e frustram as suas mais legítimas aspirações, nem sequer oferecendo uma solução cabal ao problema da miséria” (1973).
Os enunciados em torno da injustiça e do “compadrio” acompanharam frequentemente os processos revolucionários.
3. Com o liberalismo o homem deixou de ser a razão central da vida em sociedade. A economia paralela alastra-se e com ela outras formas de comportamento moralmente condenáveis. A corrupção corrói os interstícios morais da sociedade, assume proporções violentas e a sua percepção abala a alma da sociedade.
O combate à corrupção surge frequentemente como uma das palavras de ordem nas movimentações populares. Mais uma vez tem estado presente nas movimentações recentes. “Corrupção, desigualdades e pobreza são os motores da revolta no Egipto” afirmava recentemente uma reportagem televisiva. A apreciação segue o mesmo rumo na observação dos acontecimentos na Líbia: “país marcado por petróleo, corrupção e abuso do poder”.
4. Em Portugal nunca poderemos dizer “desta água não beberei” depois de tanto tempo a beber água inquinada.
O que podemos afirmar inequivocamente é que a corrupção tem aumentado na última década. A sua percepção provoca crescente angústia social. É o Banco Mundial que o comprova.
O que podemos afirmar inequivocamente é que surgem novas formas de luta contra a corrupção que vão da crescente edição de documentos sobre o desgoverno e os negócios obscuros até à mobilização para uma manifestação através das redes sociais.
Parafraseando Victor Hugo, a luta contra a corrupção pode ser faísca, “das faíscas vem o fogo, do fogo brota a luz”.