José António Moreira, Visão on line,

Desde finais do transacto ano, a Procuradoria Geral da República (PGR) possui um “sítio” na Internet onde os cidadãos podem denunciar fraudes e situações de corrupção (https://simp.pgr.pt). Esta utilização da tecnologia informática pela PGR, para dar combate a esses “cancros” sociais, merece-me três pequenos comentários.
O primeiro, respeita ao acto da denúncia em si. A tentação é para, no imediato, condenar quem denuncia e, neste caso particular, quem incentiva à denúncia. Não é, no mínimo, simpático que alguém denuncie um seu concidadão. Este tipo de antipatia para com um qualquer denunciante tende a colher raízes num tempo em que as denúncias tinham natureza política e implicavam, da parte do aparelho policial do Estado, graves implicações para a vida e integridade física dos denunciados.
Felizmente, os tempos mudaram e, no mesmo sentido, deve também mudar o modo como encaramos a denúncia. Em casos particulares como o referido, esta deve ser entendida como um acto de cidadania, que pretende fazer chegar à Justiça informação que, tratada sob o enquadramento legal vigente, leve as autoridades a actuarem no sentido da erradicação de comportamentos que podem colocar em causa o regular funcionamento da vida em sociedade e, no limite, minar as próprias fundações do Estado.
O segundo, respeita à capacidade da PGR, por via do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), para dar resposta às denúncias recebidas. A aceitar como fidedigna a informação difundida na imprensa escrita, no mês de Novembro foram recebidas, em média, 11 denúncias por dia. Tendo em consideração o conhecido défice de recursos humanos e financeiros afectos à investigação criminal em Portugal, parece fora de causa que o DCIAP tenha capacidade para gerir tal volume de denúncias. Mesmo tendo presente que mais de metade delas poderá não sobreviver a um primeiro escrutínio, por inequívoca falta de plausibilidade ou sustentação, fica ainda a dúvida sobre a capacidade daquele órgão para lidar com as restantes. As consequências resultantes dessa incapacidade são negativas a dois níveis: pela desmotivação que tenderá a provocar nos cidadãos denunciantes, que não verão o seu esforço produzir resultados; pelo efeito sobre os serviços de investigação, que se verão soterrados com uma avalanche de denúncias, com nefastas e dilatórias consequências para o conjunto dos restantes processos em curso. Portanto, sem dotar o DCIAP dos meios adequados a lidar com tal avalanche de informação, a medida peca pelo voluntarismo que se lhe reconhece.
O terceiro comentário, volta ao modo como encaramos e exercemos a cidadania. Esse exercício não é independente do modo como a Justiça funciona. No mencionado “sítio”, se pretendermos efectuar uma denúncia, somos avisados de que “A comunicação dos factos pode ser feita de forma anónima. No entanto, é importante que tenha conhecimento de que, quanto a alguns tipos de crimes (crimes semipúblicos ou particulares), as denúncias anónimas não substituem a denúncia formal dos factos, que deve ser efectuada num serviço do Ministério Público ou num órgão de polícia criminal. Nesses casos, é necessário que o denunciante/queixoso se identifique e assine a queixa ou que a apresente através de mandatário judicial ou mandatário munido de poderes especiais para o efeito. Se tal não acontecer, o Ministério Público não pode dar início ao procedimento criminal.”. Por conseguinte, para as situações mais graves, para aquelas que faria mais sentido denunciar com vista à investigação, o denunciante terá de “dar a cara” se efectivamente desejar que o processo avance. É neste caso que, mesmo o cidadão mais consciente e mais ciente do que deve ser a cidadania e o respectivo exercício, tenderá a não arriscar apresentar um acto de denúncia formal. Com efeito, considerando a morosidade do funcionamento da Justiça e os custos a suportar por aqueles que a utilizam, julgo que se poderão contar pelos dedos de uma mão os cidadãos que estarão dispostos a arriscar o seu património – supondo que o possuem em valor suficiente –, com advogados e taxas de Justiça, em favor de um acto de denúncia que aproveitaria à sociedade como um todo. Por conseguinte, parece-me pouco provável, nas actuais condições, que os casos de fraude e corrupção que seriam de maior interesse denunciar o venham efectivamente a ser.
Em suma, o mais simples foi feito. O mais difícil ficou “na gaveta”: criar as condições no órgão de investigação que assegurem que as denúncias de fraude e corrupção serão efectivamente investigadas; garantir a cada cidadão que, no caso concreto deste tipo de denúncias, tendo em conta que elas aproveitam à sociedade como um todo, o seu acto de cidadania não implicará para ele a assumpção de qualquer custo, sendo este integralmente suportado pelo Estado. Neutralizar o eventual impacto financeiro de uma denúncia deveria ter sido, aliás, a primeira coisa a fazer. Tal garantia emparelharia, então, com a que o “sítio” refere quanto à protecção pessoal a dispensar a quem se dispuser a servir de testemunha.