António João Maia, OBEGEF
Os interesses colectivos estabelecem-se a partir dos interesses particulares, e só existem na medida em que os interesses particulares tenham uma existência efectiva. Os interesses colectivos são os interesses particulares que são comuns a um conjunto de indivíduos.
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Assinalou-se a 9 de Dezembro o dia internacional contra a corrupção.
Uma vez mais se organizaram seminários, conferências e outros espaços de reflexão e de troca de experiências e percepções dos mais diversos quadrantes relativamente ao problema. Neles se expressaram as grandes preocupações que a sociedade e os cidadãos denotam relativamente a toda esta problemática. Os contextos que explicam estas práticas. A importância e as dificuldades da sua prevenção, detecção, punição e controlo. Ou ainda os efeitos que reconhecidamente delas decorrem e que traduzem um somatório de custos, com parcelas de dimensão económica e financeira, social, cultural e política.
Nós próprios, e o OBEGEF (Observatório de Economia e Gestão de Fraude), envolvemo-nos directamente na organização de um evento com estas características, que contou igualmente com a participação de entidades formais de controlo, de prevenção (o Conselho de Prevenção da Corrupção e o Tribunal de Contas) e de repressão (o Ministério Público e a Polícia Judiciária). Em conjunto, e uma vez mais, procurámos sinalizar as preocupações que o problema suscita e reforçar a necessidade das instituições que o estudam e controlam conjugarem esforços e sinergias para mutuamente enriquecerem a sua acção e fortalecerem a sua capacidade de controlo sobre o problema.
Na sua essência, como já vimos em textos anteriores, a corrupção traduz atitudes egoístas daqueles que optam por este tipo de práticas. Decorre da supremacia do interesse privado sobre o interesse público, sempre que estes entram em conflito.
E é este ponto do conflito entre interesses públicos e privados que verdadeiramente aqui pretendo aflorar.
Uma questão acerca da qual tenho reflectido é justamente a de procurar perceber a relação existente entre um e outro tipo de interesses, e, existindo essa relação, qual deles decorre e qual deles é decorrente do outro.
A mera observância das atitudes das pessoas com quem nos relacionamos diariamente permite-nos colher elementos muito interessantes acerca destas questões. Os dados observados suscitam a possibilidade de os interesses particulares antecederem os interesses colectivos e não o contrário.
Os interesses colectivos estabelecem-se a partir dos interesses particulares, e só existem na medida em que os interesses particulares tenham uma existência efectiva. Os interesses colectivos são os interesses particulares que são comuns a um conjunto de indivíduos. No limite a uma sociedade. E quando essa coincidência é total, provavelmente não se colocarão questões de conflitualidade. Não se colocará a necessidade de subverter as regras de funcionamento do sistema – de o corromper – para assegurar a satisfação adequada de um interesse particular.
Um exemplo desta situação decorre da necessidade que todos os indivíduos têm de se alimentar. A existência de um volume disponível de alimentos que permita a satisfação da alimentação a todos os sujeitos do grupo, a todo o tempo, não suscita situações de conflitualidade. O interesse particular de cada ser – a necessidade de assegurar a ração diária – é garantido pela organização social, pelos meios de produção e pelo funcionamento do mercado. Quando muito poder-se-ão colocar questões no acesso a determinado tipo de alimentos que, por serem mais caros, apenas estão disponíveis – acessíveis – a alguns. Mas ainda assim, e com estas nuances, ao garantir alimentos em suficiência para todos, o sistema encontra poucos ou menos nenhuns pontos de conflitualidade, pelo menos deste ponto de vista que estamos a considerar.
Porém, se porventura equacionarmos uma situação de escassez de alimentos, não será difícil imaginar soluções alternativas, em que cada sujeito procure por si só soluções que lhe garantam a satisfação do seu interesse – da sua necessidade – particular e natural, mesmo sabendo que essas soluções colidem com o interesse igual ao dos outros sujeitos, ou seja o interesse geral – por isso se prevê o crime de açambarcamento para punir práticas desta natureza que possam ocorrer sobretudo em momentos de dificuldade de produção, acesso ou distribuição de alimentos.
Mas vejamos outro exemplo: ao final de um dia de trabalho, um grande grupo de automobilistas tende a aglomerar-se em fila no final de uma via rápida. O interesse particular de cada um deles é chegar a casa rapidamente. Por isso o interesse geral de todos é também esse. E é até natural que fora da hora de ponta todo o trânsito se faça de modo regular, sem atropelos, com respeito pelas regras, com cada automobilista a respeitar a sua posição de precedência na marcha do trânsito. Porém, a natural aglomeração de automóveis em hora de ponta faz com que uma das dimensões desse interesse – o chegar rapidamente – se altere. Nessas circunstâncias assistimos a soluções de ordem diversa. Os mais calmos e pacientes – porventura a maioria –, aguardam ordeiramente na fila até que a sua vez de avançar chegue. Mas haverá alguns que, menos calmos, com um compromisso inadiável, ou por outra qualquer razão, tentarão encontrar atalhos, caminhos alternativos, passar em contra-mão, forçar a passagem à frente dos automóveis que têm diante de si, cruzar um traço contínuo, arriscar uma ultrapassagem em zona perigosa, passar um semáforo vermelho, apitar até ao limite do ensurdecedor, para assegurar esse seu interesse, mesmo sabendo que dessa forma contribuirão para atrasar ainda um pouco mais os outros, que assim terão de permanecer na fila por mais alguns minutos e acabarão por chegar a casa ainda um pouco mais tarde do que se nada disso tivesse ocorrido.
E é um pouco nestas situações de conflito de interesses que alguns jogam os seus trunfos, com exclusiva base no seu egoísmo, de modo a assegurarem a todo o custo a satisfação de seu interesse particular, mesmo sabendo que o fazem em prejuízo da satisfação do mesmo tipo de interesse por terceiros, ou seja do interesse geral.
E julgo que as atitudes que explicam as opções por práticas de corrupção parecem desenhar-se um pouco em contextos semelhantes. Os autores de actos de corrupção denotam atitudes idênticas. Não conseguem ver além do seu interesse particular. Não conseguem perceber que as opções que adoptam para alcançar esses seus interesses prejudicam os demais sujeitos no alcance de um interesse de dimensão idêntica.
E o que fazer para procurar atenuar atitudes desta natureza? Julgo que a educação para a ética e para a cidadania possa ter um contributo muito positivo para atenuar estas questões. É claramente uma aposta de médio e de longo prazo. Mas importa que a sociedade tome medidas nesse sentido, de modo a assegurar processos mais sólidos e coerentes em torno da formação para valores como a igualdade, a fraternidade, a partilha, o respeito, a transparência, a honra, mas também para que os cidadãos e a sociedade no seu todo se tornem menos indiferente a estes problemas.