Carlos Pimenta, OBEGEF

 

A cultura de um povo expressa-se em todos os aspectos da vida. Logo também na fraude. Mas como?

Tenho que vos confessar que há frases que me são irritantes. “Por aqui e por ali há mais fraude e corrupção por razões culturais” é uma dessas afirmações. É banal, termina com a aquiescência dos presentes e deixa o emissor venturoso por tão profunda afirmação. São lucubrações habituais e, por isso mesmo, ainda fico mais inquieto: receio que se tornem normais.

Devo-vos uma explicação sobre o meu mal-estar até porque não podemos afirmar categoricamente que a frase esteja errada. Vamos por partes.

A fraude, nela incluindo a corrupção, não é visível até ser descoberta. Pode existir durante anos sem que ninguém se aperceba da sua existência. Só isso justifica que certas empresas consideradas como revelações do empreendedorismo e da boa gestão venham posteriormente a revelarem-se defraudadoras, violadoras da lei. Por isso, é impossível dizer-se que «aqui ou ali» haja mais fraude: não podemos confundir percepção de fraude, com fraude; não podemos confundir frequência da fraude com o seu montante. Além disso, num mundo onde as fronteiras se diluem, a localização da fraude não indica quem é o seu autor. Os países têm fronteiras, mas a criminalidade internacional organizada de colarinho branco não.

A fraude faz parte de um processo. Ela pode resultar de um conjunto de infracções e pode dar lugar a muitas outras. Se não fizermos o filme, se nos limitarmos a tirar uma fotografia, recusamo-nos a ter uma visão de conjunto. Muitas das maiores fraudes que a história conheceu não se deram nos países de «cultura defraudadora» mas em bastiões do comportamento exemplar. Muitos países são considerados mais corruptos que outros, pelo índice de percepção publicado pela Transparência Internacional, mas são muitos dos países bem comportados que continuam a manter relações económicas com esses países, aceitando as regras desse ambiente corrupto. E são esses mesmos países íntegros que continuam a aproveitar a lavagem financeira dessa riqueza, acolhendo entusiasticamente o dinheiro sujo nos paraísos fiscais, offshores, jurisdições de secretismo, instalados nas suas jurisdições.

Mas será que a cultura não tem nada a ver com a fraude e a corrupção? Há «um fundo de verdade» porque tudo é cultura. Como diz um autor “a cultura apresenta-se como totalidade social mais vasta que a própria sociedade”. A cultura de um povo expressa-se em todos os aspectos da vida. Os bens existentes numa comunidade são sempre bens culturais, isto é, bens analisados de acordo com uma certa hierarquia de valores associada à sua práxis. Também a vivência social do tempo é um dos traços fortes da sua cultura. Tudo o que acontece é uma manifestação cultural. Se se considera que «aqui e ali» há mais fraude, há que perceber em detalhe quais são os precisos factores que o determinam. Será a concepção de interesse privado e interesse público e como tal se plasma na legislação desses países? Será o tecido empresarial, a dimensão das empresas e a formação dos administradores que não permitem encarar o problema de frente? Serão as relações de confiança entre os cidadãos e destes com o Estado que é permissiva da fraude e, no caso afirmativo, que acontecimentos conduziram a esse enfraquecimento do capital social?

Falar em cultura em geral é uma forma solene de dizermos “não há nada a fazer”, cruzarmos os braços e ficarmos conformados com a nossa inoperacionalidade. Creio que é essa atitude que me irrita particularmente! Outra coisa, totalmente distinta, é detectar factores permissivos e impulsionadores, causas da fraude, e tentar superá-las.

E já que estamos a falar de cultura num mundo globalizado, politica e economicamente hierarquizado, não nos esqueçamos que aquilo que para uns pode ser corrupção, para outros pode ser lobby, aquilo que para uns pode ser corrupção para outro pode ser financiamento legal das campanhas eleitorais.

Quando estamos a falar de fraude desfraldamos a bandeira de ética e deve ser esta a nossa referência.