José António Moreira, Visão on line,
O jornal Público de 2.9.10 titulava que os processos fiscais prescritos no período de 2006 a 2008, nos serviços de finanças de Lisboa e Porto, implicavam mais de mil milhões de euros de receita perdida.
O número em causa é, só por si, capaz de causar calafrios a qualquer contribuinte, muito particularmente em tempos de descontrolo do défice orçamental e aumento de impostos. Na verdade, num cálculo muito lato, considerando os contribuintes efectivos de IRS, representa cerca de 400 euros de sobrecarga a cada um.
Mas não foi isso que me tocou particularmente. Foi, sim, o facto da notícia ter despertado uma memória que, no baú das recordações, de quando em vez é reactivada. Demasiadas vezes para o meu gosto.
A empresa era pequena, familiar e com problemas financeiros. Eu era jovem, cheio de energia, necessitava de arredondar o rendimento mensal e tinha o "know how" de que o empresário precisava. Tornei-me consultor da empresa.
Desde o início se tornou evidente que um dos grandes problemas desta era a promiscuidade existente entre a vida pessoal dos sócios-gerentes e a actividade empresarial. A caixa da empresa funcionava como uma espécie de poço sem fundo onde todos metiam a mão e cada um enchia o bolso. Bem, mas para além dessa bizarria, que melhor ou pior se foi controlando, a empresa possuía uma característica que tornava a sua gestão complicada: a sazonalidade da actividade. Sobretudo nos meses de Inverno, a actividade comercial quase parava, por falta de mercado, mas a industrial continuava a produzir para "stock".
Num dos Invernos mais rigorosos de que me lembro, a gerência teve que tomar uma decisão: ou pagava os salários aos operários, ou pagava as contribuições à Segurança Social (SS). Foi aquela a decisão tomada. Ganharam os operários.
Entretanto, chegou o ofício da SS a notificar a falta e a solicitar o pagamento dos meses em dívida. Mas os negócios não estavam a correr da melhor maneira e não se pôde evitar que as prestações em atraso baixassem a contencioso e a respectiva cobrança judicial tivesse início. Mais uma preocupação a juntar a muitas outras.
O aviso-intimação da Administração Fiscal chegou rápido, com indicação de que seriam penhorados bens da empresa julgados suficientes à cobertura do valor em dívida. Mas o facto é que os meses foram passando e os oficiais de justiça não apareciam a concretizar a ameaça. Tudo se passava como se a dívida não existisse. Até os gerentes pareciam andar esquecidos do assunto. Quando eu lhes falava do assunto a recomendação que me faziam era para que "não me preocupasse, pois o assunto estava sob controlo". E os meses iam-se sucedendo, dois Invernos chegaram e partiram. Quase como se a dívida à SS não tivesse passado de um sonho mau. A única certeza de que de não se tratava efectivamente de um sonho era o registo contabilístico que a discriminava entre muitos outros passivos.
Entretanto, outros desafios profissionais surgiram e eu deixei a empresa. E só por mero acaso, muito mais tarde, vim a saber como a dívida tinha estado controlada. Numa altura em que os processos ainda não eram traduzidos em bits e bytes como hoje, mas de papel grosso arrumado em dossiers e arquivados em ficheiros metálicos, o funcionário das finanças encarregado das cobranças coercivas arrumava tais processos por ordem decrescente de prioridade na resolução. Neste esquema organizativo de grande simplicidade, sempre que o processo da empresa chegava à dianteira da lista das prioridades era por ele, sistemática e arbitrariamente, remetido para o fim da fila.
Não sei qual o incentivo do funcionário para adoptar tal atitude. Talvez fosse a militância partidária que era da mesma cor da dos gerentes da empresa; talvez fosse uma qualquer benesse que lhe fosse atribuída sem passar pelos livros da contabilidade empresarial. O certo é que o processo foi passando para o fim do ficheiro uma vez, outra e outra, à medida que o tempo passava.
Uma eventual prescrição não ocorreu porque, entretanto, o chefe da repartição de finanças local foi substituído e o novo fez um levantamento exaustivo das dívidas em cobrança coerciva e respectivas antiguidades. Facilmente se apercebeu do atraso da dívida da empresa e passou a colocar sobre esta uma pressão quase diária, de modo a assegurar a respectiva cobrança.
A empresa acabou por pagar essa dívida, mas não sobreviveu a muitas outras que veio a contrair. Hoje não existe.
Não sei se o "zeloso" funcionário alguma vez chegou a ser punido ou sequer admoestado. No entanto, para mim, sempre que ouço falar de prescrições de dívidas e do desaparecimento de processos de avultadas dívidas não posso deixar de pensar neste caso.
Talvez eu seja injusto ao assumir, sem mais, que por detrás das prescrições de dívidas fiscais tendem a estar sempre atitudes desonestas de funcionários que são contratados e pagos para cuidar da coisa pública como se sua fosse. Mas não posso evitá-lo. É por isso, também, que sou um acérrimo defensor da rotação regular dos cargos hierárquicos na Administração Pública; e de que as nomeações em tais cargos, sem excepção, sejam baseadas no mérito dos candidatos.
Hoje, com as denominadas nomeações de confiança política, que preenchem quase de alto a baixo a estrutura dirigente daquela administração, é meio caminho andado para que a culpa associada às desonestidades praticadas morra completamente solteira.
Paga o contribuinte. E paga a sociedade como um todo, pelo desincentivo que resulta da impunidade instalada a todos os níveis da causa pública.