José António Moreira, Jornal i
Em miúdo, em aldeias do interior, dizia-se que fulano ou sicrana tinha ido consultar um(a) “vidente”. Hoje com as tecnologias existentes nem é preciso sair de casa
A televisão na parede não era aquele adereço que ninguém vê ou ouve. A sala de espera tinha poucas pessoas, o nível de ruído baixo, o som do aparelho era audível.
"A vida nas cartas", assim se chamava o programa transmitido pela SIC. Uma senhora, a "vidente", respondia em directo às perguntas que os telespectadores lhe colocavam através de uma daquelas linhas telefónicas "caça-euros", agora tão em voga nos nossos canais televisivos.
"Ó querida, tem de ligar outra vez, pois só pode colocar uma pergunta por telefonema". E poucos minutos depois, quando o afluxo de chamadas abrandava, motivava os telespectadores a telefonarem com a oferta de duas, ou mesmo três perguntas pelo preço de uma. Estas giravam em torno do amor, das finanças pessoais, da saúde e da antevisão do futuro.
"Tenho dúvidas se devo pedir um empréstimo para pagar a dívida que tenho", referiu a telespectadora, com voz sofrida de alguém que se sentia perdida. "Ó minha querida, é claro que deve pedir o empréstimo", foi a resposta imediata, sem qualquer tipo de "mas" ou pedido de informação extra. Desta vez nem as "cartas deitou", a resposta saiu automática. (Como é que alguém, sem saber as condições do empréstimo, podia dar tal tipo de parecer?).
"As dores que sinto no estômago há algum tempo não passam, que acha que devo fazer?", outra pergunta. "Ó querida (se a memória não me falha, nesse dia apenas mulheres telefonaram), tome um pouco de água morna ao levantar, porque isso devem ser cólicas ... isso vai passar". Sem formação na área, e sem informação que permitisse perceber o verdadeiro problema da pessoa que telefonava, a "vidente" acabara de fazer um diagnóstico médico e prescrever tratamento. (A Ordem dos Médicos, sempre tão atenta, ainda não se deve ter apercebido desta concorrência).
Nos tempos de miúdo, vivendo numa aldeia do interior, ouvia dizer, de vez em quando, que fulano ou sicrana tinha ido consultar um(a) "vidente" para resolver um "problema". Hoje com as tecnologias existentes, nem é preciso sair de casa. Basta pegar no telefone e ligar. O que não esperava era que esse tipo de actividade tivesse lugar em directo, em canal de sinal aberto. Possivelmente o exercício da actividade nos moldes descritos não colidirá com a Lei. As pessoas são livres de contratar, só telefona e aceita os conselhos da "vidente" quem quer. No domínio da ética, porém, a actividade tem contornos de fraude, pois se aproveita da extrema fragilidade emocional de alguém para gerar um proveito a "troco de nada".
Em muitos casos essa fragilidade estará ligada, julgo, à solidão. Tem-se discutido muito a questão da natalidade, procurando soluções para o respectivo fomento. Estou de acordo, embora considere a justificação subjacente, a de olhar os nascituros como garante do pagamento das pensões futuras, puramente materialista. O que não tem sido discutido é a solidão, salvo quando mais um cadáver é descoberto depois de muitos meses sem ninguém se ter apercebido do falecimento. Os idosos são as vítimas privilegiadas deste drama social, embora este seja etariamente transversal. Muitas dessas solidões, tenho a certeza, alimentam as linhas de valor-acrescentado. Programas inenarráveis como "A vida nas cartas" mantêm-se na grelha de programação de um canal de televisão em sinal aberto porque cada um, em particular, a sociedade, como um todo, tem cada vez menos tempo para tomar conhecimento da existência do outro. E para com ele interagir.