Carlos Pimenta, Visão on line,

Se o preço é um elemento a ter em conta, transformou-se, muitas vezes, em instrumento de logro

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1. O Ricardo comprou um produto alimentar cujo conteúdo era diferente do anunciado, apesar dos cuidados, por se lembrar da inclusão indevida de carne de cavalo e outros animalejos. Isabel constatando no seu telemóvel uma chamada não atendida prontificou-se a ligar e a partir daí passou a pagar chamadas que nunca fez. A Conceição recebeu com agrado a possibilidade de uma consulta médica gratuita, mas veio a descobrir amargamente que só o era antes de entrar. O Fernando contratou um serviço audiovisual pelo telefone e só mais tarde veio a aperceber-se que o pacote oferecido não era exactamente o que lhe tinha sido descrito e uma parte da informação foi-lhe sonegada. Naquele dia de praia a família Ribeiro ofereceu a si mesma uma jantarada de marisco fresco da região, que tinha vindo congelado do estrangeiro. O medicamento tinha o princípio activo receitado pelo médico, mas a sua dosagem estava aquém do necessitado. Malaquias emprestou dinheiro ao banco ao colocar aí as suas poupanças, mas não desconfiou que ele ia ser utilizado para operações alheias a uma boa gestão do negócio. Milhões de crianças adoeceram, e algumas morreram, na sequência da contrafacção do leite infantil, e dos aditivos acrescentados para impedir o controlo das autoridades sanitárias. A Clara, quase por brincadeira, controlou as quantidades e os pesos dos bens adquiridos e constatou uma tendência para um ligeiro “erro” para menos. Entre os dois bens semelhantes na prateleira da loja optou pelo que estava em campanha, mas o preço na base de dados, registado na caixa, não correspondia ao que estava tabelado. Campanhas humanitárias internacionais foram canais para grandes laboratórios testarem medicamentos em cidadãos desprotegidos socialmente, nomeadamente em África. A Felisberta ficou espantada quando a vizinha lhe disse que tinha comprado o mesmo produto que ela, no mesmo local, mais barato, pois ela foi comprá-lo hoje para aproveitar o preço de promoção. Quase por acaso Macedo constatou que os preços na factura da refeição eram mais elevados do que estavam anunciados. A família Silva já tinha pago o sinal do aluguer do lindo apartamento anunciado no site, mas ao chegar ao local constatou que ele não existia. Enfim, algumas situações, das muitas mais susceptíveis de enunciação, que já ocorreram a alguns de nós.

No Reino Unido (onde há mais preocupação em conhecer estudar e combater estas situações, e onde há menos probabilidade de fraude que no nosso país como revelam os indicadores de economia não registada) algumas destas situações representam, durante um ano, aproximadamente, 10.000 milhões de libras retiradas aos consumidores, o que significa que cada cidadão é roubado no correspondente a 40% dum salário mínimo nacional do nosso país. E, contudo, estes números, estão muito aquém da realidade efectiva. Os consumidores são profundamente defraudados, burlados, no seu quotidiano.

2. Em muitas situações podemos dizer, categoricamente, que são defraudados, mas os contornos da lei não são exactamente os mesmos da ética e das boas práticas. Vamos encontrar na publicidade fronteiras muito difusas com o logro, a informação enganosa, incompleta, de difícil acesso. A publicidade frequentemente serve mais para enganar que para informar. É legítimo mobilizar o público para aquisições a preços de campanha, mais baixos, e estes na realidade apresentarem-se mais altos? É legítimo referir o não-pagamento de um serviço durante um período, quando é um jogo de linguagem e o não pago é de um produto diferente, provavelmente desinteressante? É legítimo anunciar dois, três ou quatro bens pelo preço de um quando essa possibilidade depende de um conjunto de condições que fazem o cliente pagar todos sem o saber? É legítimo anunciar soluções que vão contra todos os conhecimentos científicos? Claro que há sempre um argumento legal possível: “disse-se para ler a documentação sobre a oferta”, “anunciou-se o preço que se praticava, competia ao adquirente validar ou não a informação”. Uma lógica jurídica que é capaz de tornar o conto do vigário ou muitas outras burlas perfeitamente legais. Se tais situações são legais, é a lei que não está bem.

Mas há muito mais. Nos actos de compra que todos nós realizamos há grande assimetria de informação, uma frase pomposa para dizer que só temos acesso a uma parte do filme. Se a concorrência entre supermercados num cabaz de produtos está a arruinar os vangloriados produtores nacionais e a lançar trabalhadores no desemprego, nós não temos o direito de saber? Se algum do peixe na banca do mercado foi capturado ilegalmente comprometendo a manutenção da espécie às gerações vindouras nós não temos o direito de saber? Se o preço mais barato de uma peça de roupa significa trabalho infantil, e efectiva escravatura noutros países, nós não temos direito de saber? Se alguns dos produtos que temos no nosso frigorífico são peças de uma cadeia que envolve a criminalidade organizada e são a contrapartida de tráfico de armamento e prostituição, nós não temos o direito de saber? Quando compramos uma viagem aérea não temos o direito de saber que na manutenção dos aviões são frequentemente utilizadas peças contrafeitas, porque são mais baratas que as originais? Quando vamos fazer alguns tratamentos e andamos a escolher a clínica que o faz mais barato não temos o direito de saber que uma parte das diferenças de preços resulta da qualidade dos materiais utilizados na intervenção? A resposta é categórica: temos esse direito. Numa época de individualismo que nos entra por todos os poros do esquecimento dos outros fala-se em “responsabilidade social” para cobrir o sol com a peneira. Usando tal terminologia não têm os compradores o direito de exercer a sua responsabilidade social? Claro que sim.

3. Tal como quando o mar bate na rocha são alguns dos elos mais fracos da sociedade (ex. idosos, ou com iliteracia financeira) que mais probabilidades têm de ser enganados. A velocidade da vida quotidiana, a sistemática falta de tempo, a infinita informação e a forma de promover os negócios apresentam, entre si, conflitos castradores da informação necessária. Recorde-se, por exemplo, que muitas opções entre produtos não se fazem pelos seus preços isolados mas por “preços de pacote” de difícil comparação e, ao comprar-se hoje mais barato pode-se estar a comprar mais caro amanhã.

Porque os exemplos vão longos deixemos de lado uma vasta quantidade de fraudes a que os consumidores estão mais sujeitos: roubo de identidade, phishing, clonagem de cartões, etc.

Enfim, os consumidores na aquisição dos bens e serviços essenciais à sua vida quotidiana são burlados, defraudados, legalmente enganados, ignorantes de muitas informações que lhe foram ocultadas, coarctados de exercerem plenamente a sua cidadania consciente.

Se o preço é sempre um elemento a ter em conta pelo adquirente, nestes tempos de crise e de austeridade restritiva divinizou-se e transformou-se, muitas vezes, em instrumento de logro.

4. Há que reconhecer que os direitos dos consumidores e as suas capacidades de intervenção aumentaram bastante nas últimas décadas. Mas também há que admitir que a sofisticação do logro, a quantidade asfixiante de informação e a escassez de tempo, a centralização do capital e a dimensão da riqueza e rendimento fictícios e transitórios aumentaram, que este capitalismo globalizante escorre criminalidade por muitos dos seus interstícios. É um jogo diabólico.

Na defesa do consumidor há que dar mais atenção à fraude, ilegal ou legal, de que são vítimas. É um trabalho árduo. Exige mais conhecimentos, mais formação, mais denúncia, mais divulgação das irregularidades, mais exigências legais, mais objectivos políticos, mais operacionalidade judicial e, sobretudo, mais esclarecimento e vontade cidadã dos consumidores. Cidadãos unidos num mar de tubarões esfomeados.