Carlos Pimenta Jornal i

A novidade da “moeda privada” (bitcoin) só pode resultar da tendência cíclica para se esquecer o passado

1. "Para eles era uma novidade ouvir o seu mal-estar e a sua escravatura relacionadas com uma causa perceptível", diz-nos Halldór Laxness no seu romance, quando as causas da miséria quotidiana são explicadas, rompendo a resignação. Mas nem sempre temos essa lucidez e ao combatermos uma iniquidade criamos uma ainda maior.

Vem tudo isto a propósito das moedas electrónicas, aparecendo a bitcoin como a mais popular. É uma moeda "gerada" pela utilização privada de redes informáticas, tendencialmente impessoal. Como tal, é de fácil utilização entre os que a aceitam como meio de pagamento e de baixos custos de transacção. Resulta da "descrença nos sistemas monetários tradicionais", "é uma maneira de transferir poder das grandes instituições governamentais para os indivíduos", pois "depende fundamentalmente, da procura do mercado".

Contudo, a novidade da "moeda privada" só pode resultar da tendência cíclica para se esquecer o passado. Sempre houve. Os objectos inicialmente utilizados na troca, os metais preciosos cunhados por solicitação das pessoas, os certificados criados pelos bancos privados, os depósitos à ordem, os créditos bancários, são formas de "moeda privada" que têm acompanhado a vida dos homens ao longo da generalização das trocas. A existência da moeda nacional resulta da dupla dimensão humana, individual e social, do reconhecimento histórico de que alguns indivíduos, cada vez menos e mais monopolizados, podem pôr em causa a coesão e a dignidade das sociedades.

A bitcoin também não se desliga dessa dupla dimensão, pois expressa o seu câmbio em dólares. É essa taxa de convertibilidade recíproca que lhe dá credibilidade e a possibilidade de funcionar como meio de pagamento. Uma convertibilidade oscilante (13 dólares hoje, mil passados 11 meses, metade do valor alguns meses depois) que obriga a reconhecer que o seu "preço é volátil". Volatilidade que impede que ela preencha outras funções indispensáveis da moeda, como as de medida e reserva de valor ou entesouramento.

A sua dependência fundamental do mercado é inerente a qualquer moeda privada. Por exemplo, a moeda bancária também é maior ou menor conforme a poupança, a utilização do sistema bancário e, sobretudo, a concessão de crédito. Mas depender do mercado também significa que a vida de cada um de nós está dependente dos donos económicos do mundo: as instituições financeiras comandam a globalização; "147 firmas controlam 40% das finanças e da economia mundiais e 737 atingem os 80%". E porque a bitcoin está ausente de qualquer regulação é um terreno privilegiado para o branqueamento de capitais do crime organizado e dos defraudadores e corruptos. Bitcoin e paraísos fiscais e judiciários são bombas de destruição dos cidadãos.

2. O liberalismo tece o seu manto diáfano da ideologia, sacralizando a nossa amada liberdade nos altares mercantis e na torpe "liberdade" de circulação de capitais. O falso automatismo regulador dos mercados exigiu uma sistemática intervenção dos estados, que validam cada vez menos a representação dos cidadãos formalmente consignada. O actual estado é um dos obreiros das brutais desigualdades sociais no mundo contemporâneo, diabolizando perante as populações a sua natureza, as suas políticas. Não se percebendo que o lobo veste a pele do cordeiro, ao combater-se o Estado pode estar-se a defender-se o liberalismo que se rejeita.

A bitcoin e a privatização dos bancos centrais são palavras de ordem das teses neoliberais susceptíveis de destruir a dignidade humana da população mundial.