José António Moreira, Visão on line,

1. Supostamente, o negócio não era para ser conhecido pela opinião pública. Mas uma fuga de informação trouxe-o em Fevereiro para a capa dos jornais. Acabou, mesmo, por merecer a atenção da Comissão de Economia e Finanças, que lhe dedicou mais uma das suas inconsequentes audições parlamentares.
2. Um dos princípios básicos da ética empresarial é o de que um negócio deve proporcionar contrapartidas equilibradas a ambas as partes envolvidas. Porém, no caso em apreço, com excepção do presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), que era parte signatária, ninguém mais parece ter percebido onde estava esse equilíbrio que, dado o risco envolvido, se apresentava nitidamente desfavorável a esta instituição.
3. Relembre-se o caso. A CGD em tempos tinha emprestado dinheiro ao empresário Manuel Fino para adquirir acções em empresas cotadas, tendo ele entregue como garantia um lote de acções correspondente a cerca de 10% do capital da Cimpor. Com a queda das bolsas, essa garantia deixou de cobrir o valor do empréstimo e, face à incapacidade do empresário para a complementar, o negócio tomou forma: a CGD compra esse lote de acções ao empresário, a 4,75 € cada (preço superior em cerca de 25% ao que vigorava nessa altura no mercado); o empresário passa a ter uma opção de compra sobre referido lote, por um prazo de 3 anos e ao mesmo preço de 4,75 Euros; caso a venha a exercer, remunerará a CGD, pelo capital envolvido e prazo decorrido, a uma taxa entre 6 e 8% ao ano.
4. Tenha-se presente que uma opção de compra dá ao seu detentor o direito, mas não a obrigação, de comprar um determinado activo a um preço (de exercício) definido à partida. Portanto, no futuro, caso a cotação das acções venha a subir acima dos 4,75 Euros, o empresário tenderá a exercer a dita opção, recomprando as acções; caso a cotação baixe, não o fará e a menos-valia resultante será suportada pela CGD. Repare-se no gráfico seguinte, cujas zonas sombreadas representam, para o horizonte temporal de um ano e valores por acção, as possibilidades de perda (eixo vertical, abaixo de zero) e de ganho desta instituição. Como se constata visualmente, as perdas potenciais são de longe superiores aos hipotéticos ganhos (que serão sempre limitados). Daí o não se ter conseguido perceber onde está o equilíbrio das contrapartidas do negócio.
5. Rapidamente o assunto deixou de ser notícia. Tanto quanto é do conhecimento público, não foram assacadas quaisquer responsabilidades à administração da CGD. Como "accionista" desta instituição - categoria que é justificada pela minha cidadania portuguesa - senti-me defraudado; como cidadão, considerei-me negativamente discriminado face ao empresário Manuel Fino, por não me ter sido dada a oportunidade de ser contraparte num negócio financeiramente tão vantajoso.
6. Eis quando, já diluída a amarga sensação de sentirmos que a "coisa pública" está a saque, o Diário Económico de 16 de Julho volta ao assunto, titulando a página inteira que "Negócio da Caixa com Manuel Fino já rende 34 milhões". O texto da peça jornalística segue de perto o teor do título, deixando latente uma defesa sem questionamento da referida operação. Segundo os autores que assinaram a peça, "a operação, que suscitou enorme polémica e críticas sobre o eventual favorecimento ao empresário, permite ao banco público acumular uma mais-valia potencial de 33,5 milhões de euros". Como acima referi e pode ser visualizado no gráfico, a manter-se o actual preço das acções (cerca de 5,27 €) a mais-valia não é da CGD, mas sim do empresário, por via da dita opção de compra. Aquela apenas receberá o juro acordado.
7. Pode avaliar-se esta peça de duas perspectivas distintas. A primeira, considera que os seus dois autores não sabem do que estão a falar. O que é pouco provável, dado tratar-se de um reputado jornal da "especialidade". A segunda, e mais verosímil em minha opinião, olha esta peça como consubstanciando uma "lavagem" deliberada e ostensiva da operação e da responsabilidade de quem a subscreveu.
8. São peças deste teor que me deixam muito céptico em relação ao nosso futuro colectivo. Elas contribuem para fomentar a minha sensação de que os "media" em vez de serem meio para despertar a consciência social para a corrupção, que se vai instalando a todos os níveis da sociedade, se vão tornando em autênticas máquinas de "lavagem" de reputações, contribuindo para a opacidade necessária à propagação dessa mesma corrupção.
9. Num país onde a Justiça não funciona, se o contrapoder eticamente responsável que se esperaria dos "media" deixar de existir, tenderá a acontecer o mesmo que nas cidades do velho oeste americano, imortalizadas nos "westerns" da minha infância: os bandidos aparecerão em força e tudo será submetido à respectiva vontade. Com uma diferença. Não haverá "xerife justiceiro" que nos venha salvar.