António João Maia, Visão on line,
Ao longo das duas últimas crónicas que divulguei através deste mesmo espaço ("A Máquina do Tempo" e "A Importância da Formação Técnica Específica"), tenho vindo a apresentar alguns dos (muitos) aspectos que concorrem para que a Justiça em Portugal se revele particularmente lenta na produção dos resultados do seu trabalho e, consequentemente, se tenha vindo crescentemente a desacreditar aos olhos da generalidade da população.
O propósito do texto de hoje vem ainda na mesma sequência, ou seja de continuarmos a fazer uma reflexão acerca de alguns dos aspectos que, em nosso entender, concorrem para a realidade do que parece ser a Justiça em Portugal nos nossos dias. Iremos assim, ao longo das próximas linhas, referir-nos ao contributo que os aspectos burocráticos podem representar no contexto da demora da prossecução dos processos judiciais.
A Burocracia é um termo que todos mais ou menos conhecemos e que corresponde "grosso modo" aos procedimentos internos que uma instituição possui para definir o seu próprio modo de funcionamento. Max Weber foi, como sabemos, o primeiro e talvez o maior cientista social a estudar a fundo as organizações e o seu modo de funcionamento, ou seja a aprofundar o conceito sociológico que é conhecido precisamente como "BUROCRACIA".
Não é naturalmente nosso propósito fazermos aqui qualquer análise científica do conceito, embora importe que dele fixemos o seguinte:
- O desenvolvimento cultural, social e económico do ser humano tem-se realizado através da complexificação das relações entre as pessoas e sobretudo entre as instituições;
- A partir de certo ponto, essa crescente complexificação das relações interpessoais e interinstitucionais apenas parece ter sido possível com o estabelecimento de normas (de regras) definidoras dos comportamentos correctos (aceites e concordantes com as expectativas do grupo que as cria) e, por oposição, dos incorrectos (os que desrespeitam essas expectativas);
- As regras definidoras do funcionamento de uma instituição (quer em termos do seu funcionamento interno, quer em termos da forma de se relacionar com as pessoas ou instituições que lhe são exteriores, com as quais tem de relacionar-se) são pré-estabelecidas e redigidas por forma a que ninguém tenha dúvidas dos procedimentos a seguir;
- Essas regras são definidas em função da prossecução dos objectivos da instituição.
É neste contexto que nasce também a noção de "funcionário burocrata", como sendo o funcionário de toda a organização que cumpre zelosamente (religiosamente) todas as suas tarefas em concordância com as regras próprias da instituição.
Não temos qualquer dúvida de que a Burocracia é algo de indispensável para o bom funcionamento de uma sociedade dita de evoluída, e mais, que nos parece impossível continuarmos a fazer evoluir as nossas sociedades sem que este aspecto da burocracia tenha necessariamente de estar presente.
O problema porém coloca-se quando as instituições, por força dessa burocracia, tendem a apresentar sinais de se afastarem gradualmente do mundo em que vivem e dos seus objectivos sociais, porque o rigor do cumprimento das regras burocráticas que as definem as vai tornando em certa medida "autistas".
Não sei se a Justiça em Portugal está num caminho com estas características, mas por vezes é um pouco esta a sensação que nos vai deixando. Vimos aqui, na crónica anterior, que as decisões da justiça são todas elas legitimas, ou seja, estão naturalmente em concordância com as normas burocráticas definidoras da sua forma de funcionamento. Ou seja, por outras palavras, analisadas do ponto de vista interno (dos ponto de vista dos próprios serviços de Justiça), tudo está concordante com as regras. Porém do ponto de vista externo (da restante sociedade) será que essa percepção interna é compreendida ou, no limite, aceitável? Estamos em crer que não. Que, por um lado, as pessoas não percebem a necessidade de um tempo tão excessivo para se conhecerem os resultados do trabalho da Justiça (como parece ser o caso flagrante da criminalidade económica e financeira) e, por outro lado (também já o tínhamos visto), por vezes nem sequer sentem como justo o resultado de tal trabalho (recorde-se o exemplo do "caso Esmeralda", que atribuiu o poder paternal da menina ao pai biológico, num momento em que toda a sociedade entendia que os "pais adoptivos" seriam as pessoas melhor talhadas para essa função).
Não temos dúvidas que a burocracia é necessária para o desenvolvimento das relações numa sociedade evoluída, porém, essa burocracia não pode tornar-se numa espécie de "cegueira". Há que, a todo o momento, identificar situações em que a conformidade com a regra se torna num afastamento dos objectivos institucionais. Não estamos a defender que nestas situações se deva desobedecer à regra (obviamente que tal não pode nem deve acontecer!), mas que a própria regra deve ser repensada e, se necessário, substituída por uma nova, mais ajustada à realidade da prossecução dos objectivos da instituição.
Um dos problemas da Burocracia, dizem-nos os estudos sociológicos realizados posteriormente a Weber, reside no facto de a imperiosa necessidade de cumprimento das regras tender a retirar capacidade de discernimento aos funcionários. Robert Merton verificou bem este efeito quando, no âmbito do desenvolvimento da conhecida teoria da Anomia (MERTON, Robert, "Social Structure and Anomie", in "American Sociological Review", Vol. 3 (1938), 672 - 682), definiu o grupo dos Ritualistas, que, por força de tanto terem interiorizado as regras definidoras do contexto sócio - cultural de que fazem parte, acabam por perder as referências dos objectivos que o grupo em que se encontram inseridos busca alcançar (todos certamente já nos cruzamos com funcionários com estas características, que não são sequer capazes de informar os utentes, que eventualmente os questionem, acerca da localização dos outros departamentos que integram a instituição a que pertencem, nem muito menos se revelam capazes de identificar quais as funções próprias de cada um desses departamentos).
Relativamente aos aspectos burocráticos da Justiça, é nossa percepção que os "entraves" (consideramos "entraves" todas as dificuldades que resultem da necessidade imperiosa do cumprimento das regras, para as situações que, podendo ser solucionadas de forma mais expedita - sem colocar em causa essas mesmas regras -, por não o serem, acarretam um arrastamento no tempo no procedimento em curso no sistema de Justiça) resultantes da burocracia, se colocam a duas dimensões: Dentro dos próprios Departamentos da Justiça onde os Processos Judiciais correm os seus termos, e também na relação desses Departamentos com a sociedade, designadamente com as instituições que a integram e que, em razão das suas funções, são possuidoras de elementos necessários para a prossecução desses mesmos Procedimentos Judicias. Vejamos ambas as situações a partir de dois pequenos e simples exemplos que, eu diria, ocorrem todos os dias em Portugal ao nível da condução dos Processos Judiciais.
Um dos exemplos de um "entrave" burocrático ocorrido no interior do próprio Departamento da Justiça onde corre termos o Procedimento Judicial:
A prossecução de um Processo Judicial carece urgentemente de um determinado tipo de informação que consta de uma base de dados de um outro serviço (público ou privado), o qual, por seu turno, apenas libertará essa mesma informação depois de receber o documento que formaliza esse mesmo pedido, designadamente de um Ofício ou de um Fax. Se esse documento, que formaliza o pedido de informação, apenas puder ser assinado pelo responsável pela unidade orgânica que conduz o Processo Judicial (em concordância com a correspondente norma existente nesse Departamento de Justiça), e se esse funcionário responsável por essa unidade orgânica estiver ausente por uma outra qualquer questão de serviço, regressando às instalações do Departamento apenas alguns dias depois, a continuidade do Processo Judicial terá de ficar necessariamente a aguardar o seu regresso, sem que nada possa ser feito pelo funcionário que efectivamente tem por funções a condução desse Processo Judicial.
A este propósito não resisto a contar uma pequena história: Há muitos anos, um amigo meu, que trabalhava num Departamento da Justiça Portuguesa, cuja identificação não é importante, contou-me que o Chefe da Secção onde então prestava serviço tinha uma regra muito clara que nunca desrespeitava e que fazia questão de transmitir pessoalmente a cada novo funcionário que chegava a essa Secção. De acordo com essa regra, em cada dia da semana o referido Chefe assinava apenas os Ofícios (então ainda não existia a possibilidade técnica de se utilizar o Fax) de um dos cinco Grupos de trabalho que compunham a Secção, não autorizando sequer que os chefes de Grupo pudessem fazer esse trabalho nas suas ausências, alegando que era seu dever funcional fazer o acompanhamento de todos os procedimentos da Secção. Assim, dizia esse meu amigo, não valia a pena preocupar-se sequer com questões pontuais de celeridade, uma vez que tudo estava dependente do dia da semana em que o expediente do seu Grupo ia a despacho.
Vejamos agora um exemplo de um "entrave" burocrático resultante do relacionamento entre o Departamento da Justiça onde decorre o Procedimento Judicial e uma qualquer instituição que lhe é exterior:
O funcionário do Departamento de Justiça que no âmbito das suas funções conduz um Procedimento Judicial tem urgentemente de colher um determinado tipo de informação junto de um outro serviço Público exterior ao sistema de Justiça. Desloca-se a esse serviço na posse do necessário Ofício que legitima e fundamenta o pedido da informação em questão, fazendo-o pessoalmente por forma a poder trazer logo consigo a tão importante informação, mas esses serviços acabam por declinar a entrega dos elementos, alegando por exemplo que o responsável não está presente para ponderar e autorizar a entrega de tais elementos, ou para assinar o Ofício de resposta, e portanto a informação solicitada será oportunamente remetida através dos serviços postais.
São exemplos muito simples, porventura caricatos, mas efectivamente continuam a fazer parte do relacionamento intra e interinstitucional que caracteriza o dia-a-dia do funcionamento da nossa Justiça, e que, adicionados a outros com contornos mais ou menos semelhantes, ajudam a perceber todo o tempo que é necessário despender para que um Procedimento Judicial chegue a uma conclusão.
Não estamos de forma alguma a defender que a burocracia é desnecessária. Tal não é sequer imaginável, dada a importância nevrálgica que representa a existência de regras. Porém por vezes parece evidente que algumas das regras existentes poderiam muito bem ser alteradas, sem que o sentido de funcionamento das instituições se desvirtuasse. Bem pelo contrário, com algumas alterações o sistema ficaria bem mais aligeirado e nesse sentido tornar-se-ia mais concordante com o que a sociedade dele espera, nomeadamente num tempo em que por força das constantes inovações tecnológicas, a vida social é pautada por ritmos cada vez mais rápidos.
Há porém ainda um último aspecto que importa referir, que se encontra também associado ao desajustado funcionamento das regras burocráticas. Referimo-nos a um factor tão importante como a motivação dos funcionários que exercem as suas funções nos diversos Departamentos de Justiça. Se, como pressupomos, nos primeiros anos de serviço, após iniciarem funções, a maioria dos funcionários se mostra com elevados índices de motivação para desempenharem as suas tarefas com os melhores índices de empenhamento, de brio e até de zelo, com o decurso do tempo e com os sucessivos "entraves" burocráticos com que o seu trabalho (e o seu "eu") se vai cruzando, julgamos que naturalmente podem tender a perder esse ímpeto, a reduzir a sua motivação e o seu empenhamento, experimentando no limite sentimentos de desapontamento e de desinteresse pela sua profissão.