António João Maia, Visão on line,
No último artigo que há poucas semanas publiquei neste mesmo espaço, referi-me à questão da morosidade dos processos judiciais como um dos principais factores que parece responsável pela imagem negativa que o sistema de Justiça tem suscitado junto da população portuguesa (ver artigo "A Máquina do Tempo").
Após a leitura daquele texto, muitos dirão, com inteira razão, acrescente-se, que é fácil afirmar que, por um lado, a sociedade portuguesa no geral tem um problema de confiança na Justiça e, por outro lado, que esse problema em muito se deve à própria instituição Justiça, nomeadamente devido à morosidade com que produz resultados dos casos que lhe são apresentados. Mais difícil porém, dirão os mesmos, entre os quais me conto, será propor pistas que possam tornar-se soluções tendentes à resolução, ou pelo menos à redução da dimensão do problema. É este exercício que hoje me proponho fazer.
Assim, ao longo das linhas que se seguem, procuro focar um dos diversos tópicos que, em meu entender, pode, se devidamente implementado, melhorar a qualidade e a eficácia de todo o sistema de Justiça português. Refiro-me concretamente à importância da formação Técnica Específica, que cada vez mais se tem vindo a revelar de primordial importância, tanto ao nível dos departamentos de detecção e investigação dos factos com contornos de suspeição de ilicitude, como depois nos níveis subsequentes, de avaliação e tomada de decisão sobre o sentido desses mesmos factos (de serem lícitos ou ilícitos). Acrescente-se que consideramos como departamentos de detecção e investigação, tanto os que fazem parte de organismos de carácter privado (como por exemplo os Departamentos de Auditoria e Inspecção dos Bancos, das Seguradoras, de entre outras) como os de carácter público (Serviços de Inspecção dos diversos Ministérios, e naturalmente as Polícias de Investigação Criminal e o Ministério Público, para o caso da Investigação Criminal). Do mesmo modo, ao nível dos departamentos de avaliação de decisão, consideramos os de dimensão privada (por exemplo para os problemas de carácter disciplinar, os mecanismos próprios de cada instituição de tomada de decisão hierárquica interna) e também os de dimensão pública (quer o Ministério Público, quer o Juiz, para as decisões Absolutórias, Acusatórias e de Julgamento, relativamente a factos cuja resolução tenha de dirimir-se ao nível do Tribunal).
O desenvolvimento económico, alicerçado no desenvolvimento tecnológico, tem conduzido as sociedades para novos territórios de trabalho e sobretudo para novos espaços de vivência e de relacionamento entre as pessoas. A todo este movimento evolutivo, que decorre a um ritmo exponencial, e relativamente a cada um destes novos territórios, têm, a Lei e o Direito, como é próprio da sua natureza, procurado definir o que são os comportamentos apropriados e, em complemento natural, quais as sanções que devem ser aplicadas a todos aqueles que de alguma forma caiam em situação de desrespeito dessa ordem legitimada pela Lei e pelo Direito.
Será sobretudo nas situações de suspeição ou de evidente desrespeito por essa "ordem legitimada", que os mecanismos de despiste e controlo são chamados a averiguar o alcance e a dimensão de cada situação em concreto, para que, depois e com base no trabalho produzido pelas instâncias investigatórias, as diversas instâncias subsequentes tomem as decisões mais ajustadas face a cada caso concreto que lhes seja apresentado. Primeiramente os departamentos de despiste e controlo procedem à recolha de todos os elementos objectivos que permitam reconstruir, tanto quanto possível, os factos sob suspeita e as respectivas circunstâncias em que ocorreram. Depois deste trabalho realizado, uma de duas conclusões têm de ser obrigatoriamente verificadas. Ou os elementos recolhidos demonstram não ter ocorrido qualquer ilícito, ou, ao contrário, eles demonstram a ocorrência de uma situação ilícita, ou seja de uma situação que contraria essa ordem legítima. No primeiro caso, os órgãos próprios (privados ou públicos, em função da natureza do ilícito, como se afirmou) decidem pelo simples arquivamento do caso. Na segunda situação, esses mesmos órgãos devem decidir-se pela prossecução do procedimento, no sentido de ser efectuado o julgamento e a aplicação ao prevaricador da sanção correspondente.
Um processo judicial pode ser comparado a uma parede que se vai construindo pedra sobre pedra, em que as últimas pedras a ser colocados ficarão tanto mais bem equilibradas, seguras e fixas, quanto mais fortemente agarradas se encontrarem as pedras anteriormente colocadas e que lhe servem de base. Da mesma forma, o processo de tomada de decisão ao nível de Julgamento tenderá a ser tanto mais justo, quanto mais informado e esclarecido tenha sido o trabalho realizado pelos departamentos de despiste e controlo e complementarmente, quanto melhor o decisor for capaz de compreender todas essas informações e esclarecimentos, ou seja todo o contexto em que os factos sucederam.
Esta constatação é óbvia, e todo o sistema de Justiça foi e está alicerçado em torno dela, ou seja, não se podem aplicar sanções sem se conhecerem bem (de forma objectiva) os factos correspondentes a um ilícito e os contextos em que eles ocorreram. O problema derivará, como dissemos no início, da própria evolução da sociedade, que de forma crescente, tem criado novos territórios de relacionamento social, com regras novas muito próprias, que muitas vezes apenas são conhecidas e controladas (porque vivenciadas) por aqueles que habitam tais territórios.
Ao nível por exemplo da fraude económica ou da criminalidade económica, como queiramos chamar-lhe, a maioria das situações suspeitas implica dissimulações contabilísticas, com recurso a "engenharias financeiras" mais ou menos elaboradas, movimentações de verbas entre diversas contas bancárias, entradas e saídas de mercadorias, e tantos outros expedientes. Quando posteriormente estas situações se revelam suspeitas e têm de ser devidamente esclarecidas (pelos departamentos de despiste e controlo), para lá dos conhecimentos próprios de condução de um processo de investigação, os investigadores carecem também de se encontrarem previamente munidos de um conjunto de conhecimentos contabilísticos, de organização de empresas, de movimentação bancária, de compra e venda de mercadorias, do controlo de entradas de matérias primas e saídas de produtos, etc., para, por um lado, conseguirem perceber os factos que vão investigar e, por outro lado, para perceberem as explicações dos sujeitos (incluindo as dos suspeitos) directamente envolvidos nos factos que investigam, sob pena de incorrerem na possibilidade muito concreta de não conseguirem perceber o procedimento que procuram reconstruir. Esta situação implica necessariamente que, para lá da formação própria acerca das formas de condução de um qualquer processo de investigação, aos investigadores seja também e em complemento proporcionada uma formação Técnica Específica adequada ao desempenho das suas funções em determinados contextos específicos.
Estou em crer que este problema não será tão evidente ao nível dos departamentos de controlo e despiste das entidades privadas, uma vez que o seu universo de trabalho tem os mesmos limites das organizações em que se inserem e, neste sentido, os aspectos Técnicos em utilização na instituição são específicos da actividade que é afinal a razão de ser da própria instituição e por essa razão encontram-se difundidos de forma mais ou menos partilhada por todos os departamentos que dela fazem parte.
Outra realidade diferente é a que encontramos ao nível dos departamentos de controlo e despiste em termos das instituições públicas (designadamente do Ministério Público, das polícias de Investigação Criminal e dos Departamentos ministeriais de Inspecção), que em abstracto podem confrontar-se, e confrontam-se, com investigações de factos ocorridos em contextos muito dispares. Um mesmo Magistrado ou Inspector pode ter por exemplo em mãos uma investigação de um caso de corrupção relacionado com a adjudicação de uma empreitada de obra pública para construção de um troço de auto-estrada (que ocorre num determinado tipo de contexto e em concordância com regras muito próprias existentes para o efeito - as regras de condução de um concurso para adjudicação de obras públicas), uma segunda de um caso de Peculato, de um funcionário de um determinado serviço público que desviou em seu favor uma determinada verba pertencente ao seu serviço, e uma terceira investigação, pelo crime de Participação Económica e Negócio, que envolve um funcionário de um departamento do Estado e um conjunto de empresas pertencentes a um familiar seu, e à qual frequentemente esse departamento adquire bens e serviços. Tratam-se de situações que decorrem em contextos próprios, todos distintos uns dos outros, mas requerendo que os responsáveis pela investigação tenham a adequada formação Técnica Específica que lhes permita perceber todos esses diferentes contextos em que estão a trabalhar. Caso contrário e apesar de poderem ser brilhantes em termos de definição de estratégias de investigação, estou certo de que mais tarde ou mais cedo, tanto os sujeitos que terão de ser abordados (nomeadamente os suspeitos da prática de ilícitos), como os próprios investigadores, irão perceber que não partilham a mesma linguagem (a do contexto em que ocorreram os factos sob investigação), o que poderá deixar os primeiros numa posição de alguma sobranceria face ao investigador, e este numa posição um tanto ou quanto desconfortável, capaz inclusivamente de lhe retirar alguma convicção ou até de lhe criar sentimentos de desmotivação para prosseguir o seu trabalho.
Este mesmo problema coloca-se depois aos níveis subsequentes que têm de tomar decisões sobre as conclusões apuradas pela investigação. Como é por exemplo possível estar-se em condições de aplicar a sanção correspondente ao autor de uma fraude praticada através de uma dissimulação contabilística, se pouco ou nada se percebe de contabilidade? Mais, como é que nestas circunstâncias e no limite, o decisor consegue assegurar em consciência, que aplicou a sanção mais adequada e justa para aquele caso, se na sua essência não o conseguiu perceber?
Este parece-me ser sem sobra de dúvida uma aspecto que urge melhorar na nossa máquina da Justiça. Importa que cada vez mais esta máquina procure caminhos que permitam que aqueles que a servem (os Investigadores dos Departamentos ministeriais e das Polícias de Investigação Criminal, enquanto investigadores, os Procuradores do Ministério Público, enquanto decisores de investigação e de acusação, e os Juizes, enquanto decisores de julgamento) tenham uma formação Técnica Específica que os habilitem a falar a mesma linguagem que é utilizada nos contextos sobre os quais são chamados a pronunciar-se.
Não estamos porém aqui a reclamar que todos estes funcionários sejam uma espécie de super-homens que tenham de ter formação aprofundada sobre todos os aspectos da vida de uma sociedade, nomeadamente nos contextos da actualidade, em que, como vimos no início deste texto, constantemente se originam novos espaços de vivência social, alguns deles com contextos Técnicos muito próprios. Pretender tal, seria querer o impossível.
A mensagem que aqui se pretende deixar vai num outro sentido. Estes funcionários devem ter uma formação comum de base, que os habilite a executar as funções que o sistema de Justiça há-de reclamar deles no seu futuro profissional (os Investigadores devem ser formados para Investigar, e os Decisores - Procuradores do Ministério Público e Juízes - para tomar decisões). Porém a um processo de formação comum de base, há-de juntar-se uma formação Técnica Específica apropriada, destinada agora apenas ao grupo daqueles que venham a desempenhar funções na área específica em que a posse dessa formação seja requerida, para evitar os problemas apontados anteriormente. Sugere-se pois que cada nível funcional da máquina da Justiça tenham um processo de formação inicial com duas fases. Uma comum a todos os futuros funcionários que venham a desempenhar uma mesma função, e uma segunda, de carácter Técnico Específico, com diversos e distintos planos de formação, destinados cada um deles a cada um dos grupos que venham a exercer funções nas respectivas áreas distintas da máquina da Justiça. Estamos claramente a falar de formação Técnica adequada ao bom desempenho profissional em cada uma das áreas da administração da Justiça.
Por outro lado, questionar-se-á, como identificar essas áreas distintas e como procurar, em relação a cada uma delas, os conhecimentos Técnicos adequados que importa que os profissionais da máquina da Justiça conheçam? Em meu entender, a resposta passará pelo estabelecimento de protocolos de cooperação institucional entre os departamentos formativos da Justiça e os Técnicos (Associações Profissionais e Patronais, etc.) que dão corpo a cada uma dessas áreas, que naturalmente terão todo o interesse nesta cooperação, uma vez que ela será sempre percepcionada como uma forte aposta que esses Técnicos fazem na credibilização das actividades que desenvolvem nessa mesma área.
Sem pretender colocar nada nem ninguém em causa, e sem ter sequer formação na área do Direito, atrevo-me, ainda assim e na minha qualidade de Antropólogo, a trazer a estas linhas uma referência à noção do "homem médio", à qual os decisores da Justiça devem recorrer no momento da tomada da decisão, para afirmar que esta perspectiva de aplicação da lei com recurso e por referência a uma espécie de figura mítica ou desfocada (desumanizada), me parece estar cada vez mais desfasada da realidade. Essa imagem do "homem médio", a que os decisores do Direito português devem recorrer, é a de um homem abstracto, sem alma, sem problemas, sem linguagem, sem capacidade de comunicar. Trata-se de um homem amorfo ou, se quisermos, de um "não - homem". O "homem médio" a que os funcionários decisores do aparelho da Justiça recorrem para comparar com o homem concreto associado ao caso que trabalham, não existe. Por mais que tentem procurá-lo, à sua frente hão-de ter sempre apenas e só um ser humano concreto, de carne e osso, com sentimentos, com alma, com problemas, capaz de comunicar através de uma linguagem própria, que não pode (nem deve) ser ignorada. Em vez de o ignorar, o funcionário decisor deve sim considerá-lo como ele é, tentando compreendê-lo no seu mundo próprio, com os seus defeitos e as suas virtudes, comunicando com ele através da linguagem que ele fala. Será apenas e só nesse contexto que me parece ser possível uma tomada de decisão mais ajustada a cada caso concreto.
Parafraseando uma vez mais o ex Presidente da República Dr. Jorge Sampaio, no discurso de abertura do ano judicial proferido em Janeiro de 2004, "o tema da formação (...) é nuclear da reforma de atitudes e de procedimentos, sem o qual não há leis que valham à crise da justiça. (...) Na formação importa considerar que passou o tempo de todos sabermos de tudo. (...) A especialização de saberes e de experiências passou a ser uma exigência da qualidade e da eficácia de todas as jurisdições"