José António Moreira, Visão on line.

1. Considera-se "criatividade contabilística" o efeito de atitudes deliberadas adoptadas pelos gestores e tendentes a, pelo uso da flexibilidade permitida pelas normas contabilísticas, proporcionarem nos relatórios e contas uma imagem das empresas mais "agradável" do que a real. Duas características são habitualmente tributadas a tal criatividade: a) tende a ocorrer dentro da legalidade e, por isso, não se confunde com uma situação de fraude. No entanto, a fronteira que separa estas duas realidades tende a ser difusa, não sendo muito fácil saber onde termina uma e começa a outra; b) tende a não ser directamente detectável para o utilizador da informação contabilística, caso contrário, sobretudo quando afecta o montante do resultado do exercício, seria facilmente neutralizada. Porém, não raras vezes, esta última característica está ausente e uma versão que se pode adjectivar de "soft", por ser explicitada no relatório da empresa, é utilizada por algumas empresas.
2. Parece um paradoxo que alguém use de criatividade para mostrar uma melhor imagem da empresa e, simultaneamente, "avise" o destinatário da informação de que tomou medidas que "coloriram" tal imagem. Talvez não seja um paradoxo. Há razões que podem justificar, pelo menos em parte, tal atitude: o mercado não é tão eficiente como tradicionalmente se considerava e os manuais da especialidade e boa parte da investigação ainda hoje pressupõem; o mercado hiper-reage em determinadas situações, provocando alterações do valor das cotações que vão além das variações do valor intrínseco da empresa; uma parte considerável dos intervenientes no mercado de capitais, em presença do relatório de uma empresa, fixa a atenção na "bottom line", isto é, no resultado reportado, não entrando nos detalhes da informação contabilística e nas explicações veiculadas por tal relatório. Seja qual for a efectiva razão, o certo é que os gestores não usariam este tipo de criatividade "soft" nas contas das suas empresas se não esperassem daí ganhos e ou o evitar de perdas.
3. Vem este assunto à liça a propósito das contas consolidadas da Portugal Telecom relativas ao 3º trimestre de 2008. O total do capital próprio no final do período ascendia a 842,0 milhões de Euros, por contraponto a 1338,2 milhões no início do ano. Uma redução de cerca de 500 milhões nesse período de 9 meses de actividade, em parte justificada pela concretização do programa de aquisição de acções próprias prometido aos accionistas aquando da OPA lançada pelo grupo SONAE. Quando se olham mais em detalhe as variações ocorridas no capital próprio verifica-se que por duas vezes, uma no 2º trimestre, outra no 3º, a empresa tinha procedido à reavaliação de "alguns" dos seus activos fixos, o que se traduziu por um efeito positivo nesse agregado de 816,5 milhões (após impostos). Ou seja, sem essas intervenções "por medida" no valor de balanço dos activos a Portugal Telecom teria apresentado um capital próprio quase nulo. E reforço o "por medida", porque se trata de medidas avulsas, sobre determinados activos - e não a totalidade dos activos tangíveis, como seria de esperar - e na (quase) exacta medida para obviar a uma situação que, muito provavelmente, teria provocado um choque no mercado.
4. Tanto quanto me foi dado perceber, o mercado não penalizou a empresa pela criatividade que usou para mostrar um balanço com "melhor cor". Em termos estritamente económicos, supondo que a reavaliação assentou no valor intrínseco dos activos reavaliados, o mercado actuou de forma correcta. A empresa não passou a valer mais ou menos do que valeria se não tivesse existido a reavaliação. Aquilo que aconteceu foi que esta trouxe à luz do dia parte de uma reserva de valor que estava oculta, mas que o mercado já teria antecipadamente reflectido no valor das acções. Mas fica a pergunta: e como teria o mercado reagido se a empresa apresentasse capitais próprios nulos ou negativos? Apesar do respectivo valor intrínseco permanecer o mesmo, como atrás se referiu, muito provavelmente o mercado teria reagido mal. Daí o incentivo para que a gestão actuasse do modo que actuou.
5. A pressão do mercado, onde sobressaem as expectativas dos analistas, tende a afectar o comportamento dos gestores e leva a actuações que, numa versão "soft", podem ser ilustradas pelo caso acabado de referir. Essa pressão tende a ser amplificada quando os interesses pessoais dos gestores estão associados à evolução da cotação das acções em bolsa. Mesmo quando tais actuações ocorrem estritamente dentro da legalidade, não parece ser de desculpar a atitude dos gestores "criativos". Aceitá-la é condescender com um comportamento que faz da informação contabilística aquilo que eles desejam ela seja em cada momento, tornando as reservas ocultas de valor na paleta usada para "colorir" a gosto a imagem da empresa. Quando o mercado não reage a tais situações está a transmitir um duplo sinal: por um lado, que é eficiente e já havia incluído no preço das acções o valor oculto; por outro, que os gestores podem "colorir" as contas com as cores que desejarem sem risco de penalização. A atitude do mercado muda diametralmente quando aparecem "buracos" onde antes se esperava existisse valor oculto. Então, surgem os queixumes do costume: "… havia a sensação de que a empresa usava de algum tipo de criatividade nas contas … mas não se esperava que daí pudessem resultar 'buracos' e situações fraudulentas". Será que um "puxão de orelhas" aos gestores na altura certa não poderia evitar a necessidade de se tomarem medidas drásticas mais tarde?
6. Com as devidas adaptações, esta era a pergunta que se fazia em tempos idos quando se discutia a educação das crianças. Hoje em dia não é politicamente correcto dar "puxões de orelhas", mesmo que verbais … apesar de termos consciência da falta que fazem.