José António Moreira, Jornal i

A Revolução de Abril foi um marco, separando o antes do depois em muitos domínios da nossa vida em sociedade

As comemorações do aniversário da revolução de Abril ainda estão frescas. Os discursos do costume, as queixas habituais, os sonhos revolucionários que cristalizaram no tempo. O que me ficou do que foi dito e escrito foi muito pouco. Retive, de modo particular, a opinião expressa em debate televisivo pela Procuradora-Geral Adjunta Maria José Morgado sobre o estado do país no que respeita à corrupção. Não é situação nova ouvir o cidadão comum enunciar, de forma generalizada, que os “políticos são todos corruptos”. Generalização injusta, em minha opinião, dadas as excepções. Mas o que a senhora procuradora disse, por outras palavras, não foi muito diferente. Não foi tanto a natureza da opinião que me marcou, pois ela já a tinha expresso em outras ocasiões. Foi sobretudo o tom que percebi na sua voz, no desânimo que lhe senti pela dificuldade em levar as situações detectadas a tribunal, por exemplo, quando políticos entram “com uma mão atrás e outra à frente” e, findos os mandatos, sem que se perceba como ou porquê, estão “bem de vida”.

A dificuldade da Justiça em funcionar neste e noutros casos igualmente graves está associada a uma multiplicidade de aspectos que, quando isoladamente considerados, não explicam o problema geral, nem são solução para ele quando sobre tais aspectos se actua. Por exemplo, a actual reforma do mapa judiciário em curso irá resolver o problema do não funcionamento da Justiça? Não vai. Poderá optimizar o uso de alguns recursos existentes, mas não resolverá a lentidão endémica da aplicação da Justiça. Porque não há inocentes entre os intervenientes no processo da Justiça.

Tenho um amigo que participa como perito judicial num processo de prestação de contas entre empresas. Contava-me há dias que ao ler os autos do processo constatou que a constituição da equipa de três peritos, ele próprio e dois colegas nomeados por cada uma das partes em litígio, demorou mais de um ano. Como uma das partes não concordou com o perito proposto pelo Tribunal, as reclamações sucederam-se e um ano se esvaiu na resolução desse (pelo menos aparentemente) simples acto do processo. E, pelos vistos, segundo ele, nenhuma das partes tem interesse em protelar o andamento do processo. Imagine-se se tivessem. Com todos os protelamentos, esse processo já leva mais de seis anos de duração e nem sequer teve ainda julgamento de primeira instância. É difícil imaginar a sua duração quando percorrer todas as instâncias. Isto, decididamente, não é aplicação de justiça.

E que dizer do actual funcionamento dos tribunais fiscais, onde a necessidade da Autoridade Tributária recolher o máximo de receita fiscal no mais curto espaço de tempo leva a que tenham prioridade os processos de maior dimensão? Uma injustiça gritante para os contribuintes envolvidos em processos menores, que têm de prestar garantias para não verem os seus bens executados, muitas vezes obtidas junto da banca a custo elevado, e depois ficam anos e anos à espera que se faça justiça (se é que isto de se pode designar como tal).

A revolução de Abril foi um marco, separando o antes do depois em muitos domínios da nossa vida em sociedade. Originou incomensuráveis benefícios. O primeiro entre todos, a liberdade que trouxe a cada um, que me permite, por exemplo, estar a discorrer criticamente nestas linhas sobre o estado da Justiça em Portugal. Esses benefícios não são, nem podem ser, obscurecidos com os altos e baixos dos ciclos económicos, precipitados por decisões de política económica menos acertadas. No entanto, pode dizer-se que os progressos sentidos em muitos domínios pelo país no pós-revolução, por exemplo na saúde e na educação, não se fizeram sentir de modo semelhante no funcionamento do sistema de Justiça. É um facto que para tal estado de coisas muito tem contribuído a incapacidade crónica dos principais partidos em definirem linhas gerais de actuação (os denominados consensos) neste domínio e, pior ainda, o desejo de cada novo governo em resolver o problema por si só, deixando cair tudo o que o anterior fez, alimentando um circulo vicioso em que gastamos, desgastamo-nos e não saímos do lugar. Assustador.