Carlos Pimenta Jornal i
1. É bom sonhar mesmo que saibamos que "a realidade é superior à ideia".
Sonhamos com as palavras do Papa Francisco: "A adoração do antigo bezerro de ouro (...) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. (…) provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. (…) O dinheiro deve servir, e não governar!". E nestes caminhos também germina o "cancro social que é a corrupção".
Que se pode esperar da Evangelii Gaudium do Papa Francisco se “a Palavra” se fizer vida?
2. A fraude é sempre uma assumpção do "eu" contra os outros. É um resultado da organização da vida em sociedade.
"Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas de um poder muitas vezes anónimo". A globalização gera um anonimato dos consumidores e dos accionistas. Muitas multinacionais estão acima dos países, não necessitam de se adaptar aos contextos sociais e a deslocalização é parte da sua estratégia. As administrações aproveitam esta diluição do poder para promoverem a criatividade contabilística, o curto prazo e as suas chorudas remunerações.
Nem todos são assim, mas assim se domina o mundo, via mercados.
"A desigualdade é a raiz dos males sociais". Contudo um bom negócio na bolsa vale mais que milhares de desempregados, ao mesmo tempo que os governos garantem uma “política anti-inflacionária” em detrimento do desenvolvimento social.
"Os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho", mas os ricos são os senhores do mundo. As grandes fortunas têm vias para pagarem menos impostos, e políticos submissos, interesseira ou ideologicamente. Aumenta o fosso social entre pobres e ricos e as desigualdades na distribuição do rendimento, entre países e dentro de cada um deles.
3. Por isso o caminho deve ser outro. A marginalização social é a ruptura da coesão social e da paz: "Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade (…) porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz." A solidariedade deve sobrepor-se ao "individualismo hedonista pagão", "é uma reacção espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada".
A ciência, a cultura, a religião e o quotidiano mostram que o “eu” só existe enquanto parte do nós. É essencial "a vida comunitária e o compromisso com os outros". Tudo seria diferente se as relações entre o eu e os outros fossem a expressão da indissociabilidade do todo, de uma nova relação ética porque esta "permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana".
4. Se “a Palavra” se fizer vida, se a relação dialéctica do eu com os outros se impuser como prática ética, consciente e assumida, o mundo será melhor e a fraude desceria para níveis históricos.
Assim seria com as fraudes oportunistas (as que se processam esporadicamente, em resultado do aproveitamento de oportunidades, saberes e autojustificações), mas o mesmo não seria de esperar com a fraude organizada (resultado de uma prática sistemática e deliberada, associada a instituições criminosas). Nestas até “a Palavra” morre.
Estas só poderão ser combatidas pela criminalização e condenação exemplar dos seus agentes e autores, eventualmente pelo cerceamento das suas vantagens financeiras.