Carlos Pimenta, Visão on line,

A Visa defende, pois, que uma das formas relevantes de reduzir a economia sombra seria a utilização dos pagamentos electrónicos
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1. A empresa responsável pelos cartões de crédito Visa emitiu recentemente mais um documento sobre a “Economia Sombra” na Europa com dados até 2013. Fê-lo e vários órgãos de informação excitaram-se com o acontecimento. Não é para menos quando assistimos ao acolhimento que algumas instituições oficiais dão ao documento, tomando-o como referência, pugnando algumas das suas medidas.

O envolvimento de um especialista na matéria e de uma multinacional de consultadoria compõem o ramalhete da credibilidade. Contudo, o trabalho não é uma análise científica do problema, mas um documento de publicidade da Visa e uma forma de influenciar a opinião pública e os responsáveis da política económica. A Visa sabe que muitas das operações financeiras se fazem por transferência bancária e por sistemas de compensação, que o nicho de mercado onde é possível mais expandir a sua actividade é nos pequenos, mas massivos, pagamentos quotidianos. A Visa sabe que é mais fácil passar a mensagem da utilização das “transacções electrónicas” ou dos “pagamentos electrónicos” que o da utilização do cartão de crédito (corresponsável pela literacia financeira revelada por muitos quando da crise que vivemos).

A Visa defende, pois, que uma das formas relevantes de reduzir a economia sombra seria a utilização dos pagamentos electrónicos em sectores como automóveis e suas peças; comércio a retalho; restaurantes, bares e serviços de catering; e transportes, com referência especial aos táxis.

2. Significa isto que o estudo manipula e falsifica dados para chegar a essas conclusões?

Se a pergunta certa fosse esta teríamos que responder pela negativa, apesar dos cálculos elaborados carecerem de muita reflexão crítica, a qual poderia pôr em causa várias das quantificações e possíveis conclusões a retirar.

A manipulação principal faz-se pelo que não se diz. O logro está no silêncio, no que se não revela e que uma explicação adequada exigiria que se dissesse.

Parte-se de uma realidade hoje muito sentida: para que uns não paguem impostos ou tenham privilégios imensos, outros veem crescer brutalmente a sua carga fiscal. É isso que hoje é um tema muito quente numa Europa que tende a ser império de alguns em vez de união de todos. A “economia paralela” assume-se como tema oficial e cartaz de indignação popular.

Contudo o problema fiscal não é específico da economia paralela. Admiti-lo é desviar a atenção do essencial, é aceitar que a fraude fiscal é apenas praticada na realização de actividades “marginais” que não são englobadas na contabilidade nacional. A realidade é outra: muitas das fraudes fiscais, quiçá as mais significativas, são feitas com registo na contabilidade empresarial, logo nacional. É para isso que existem os paraísos fiscais e judiciários, que se criam empresas “fantasma”, que se manipulam os preços de transferência, que se empolam ou reduzem os preços, que a legislação europeia abre as portas à “fraude carrocel” no espaço intercomunitário.

Quando se fala na economia paralela, com o equívoco antes referido, tende-se a admitir que as actividades que não foram registadas são todas nefastas e têm de ser prevenidas ou combatidas. Contudo a “economia paralela” engloba actividades perniciosas (que visam a fuga aos impostos, a economia subterrânea), actividades criminosas (actividades proibidas, a economia ilegal) e actividades de sobrevivência (garantindo prioritariamente a possibilidade de se existir, a economia informal). Em situações de crise, ou de subdesenvolvimento, estas últimas podem ser o sustentáculo da vida dos pobres e desempregados.

Fala-se em “economia sombra” e muitos de nós lemos “economia paralela”, tal tem sido a ambiguidade terminológica à volta destas temáticas. Contudo aquela designação engloba apenas as actividades que escapam ao registo contabilístico oficial como forma de fugir aos impostos. Engloba a economia subterrânea e uma parte da economia informal, podendo também conter algumas franjas reduzidas da ilegal. Engloba sobretudo a economia subterrânea. As conclusões que podem estar certas para a “economia sombra” provavelmente não o estarão para a “economia paralela”.

3. Os equívocos não ficam por aqui.

Admite-se que as actividades que não utilizam os meios de pagamento electrónicos (ou passam facturas automaticamente validadas) fogem às suas obrigações fiscais. Não é uma dedução lógica. Essas operações podem ser englobadas na actividade da empresa e darem lugar ao adequado apuramento do lucro tributável. Essa situação pode ser fiscalizada através de múltiplos indicadores do seu negócio, ou pela adopção de métodos de simplificação.

É de admitir que possam haver manipulações de resultados quando os mecanismos de controlo enfraquecem, mas a possibilidade de utilização de “contabilidade criativa” é menor em muitas dessas empresas que noutras de muito maior impacto na economia nacional. Simultaneamente o esforço de fiscalização dessas pequenas actividades deixam sem controlo outras bem mais importantes.

Parece inequívoco que a banquerização da actividade económica, na qual se engloba a ampliação dos pagamentos electrónicos, pode permitir uma mais extensa e oportuna fiscalização das actividades. Já muitos políticos o defenderam antes, incluindo Lenine, que usaram a possibilidade do Estado controlar o funcionamento global da economia pelo controlo do banco central e do sistema bancário.

Contudo a fraude fiscal, ponto de partida desta reflexão, também pode ser realizada utilizando os próprios circuitos da banca. Infelizmente, temos no nosso país a dramática experiência de quanto os próprios bancos podem manipular resultados.

4. Enfim, os dados contidos no estudo da Visa são frágeis, mas válidos. Contudo as suas conclusões são profundamente erradas, pela centralidade que lhes é atribuída, e pela poeira que quer deitar para os olhos de todos nós.

E não nos esqueçamos de preservar um valor fundamental: a liberdade individual, átomo de uma sociedade justa!