António João Maia, Jornal i online
A democracia está exposta ao risco de as futuras lideranças poderem ser tendencialmente menos competentes, incluindo sobretudo quanto à componente da integridade.
Há 20 anos que, a 9 de dezembro, se assinala o dia internacional contra a corrupção. Esta data ficou associada à assinatura da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, que teve lugar em 2003 na cidade mexicana de Mérida. Entre nós, a data tem sido assinalada todos os anos por diversas entidades, publicas e da sociedade civil, como por exemplo o Observatório de Economia e Gestão de Fraude, através da realização e participação em workshops, conferências, seminários, e partilha e publicação de reflexões e artigos de opinião na imprensa, entre outras formas de participação, num sinal claro de que o tema está na agenda dos principais problemas e preocupações do país.
Sobre o conteúdo e o sentido da Convenção das Nações Unidas, que Portugal adotou em 2007, tivemos oportunidade de nos debruçar em 9 de Dezembro, dia internacional contra a corrupção, reflexão onde verificámos que os seus pressupostos assumiam inequivocamente que: a) a corrupção é um problema grave; b) está presente em todos os países do mundo (e não unicamente nos mais pobres, como se sustentou por muito tempo); c) afeta a confiança sobre as instituições; d) mina a coesão social por via da crise que provoca sobre os valores de ética, da integridade, e da sua coerência; e) enfraquece toda a estrutura de estabilidade e segurança das sociedades, e, no limite; f) destrói a ética, a integridade, a justiça e a própria democracia.
E é justamente sobre a associação entre corrupção e democracia que me proponho agora partilhar algumas notas de possíveis impactos sobre a qualidade das lideranças políticas para a condução dos nossos interesses coletivos – dos cidadãos, da sociedade, ou seja do próprio Estado.
E esta relação é particularmente importante porque associa a qualidade da liderança política com aspetos tão relevantes que a devem caracterizar, como sejam: 1) ser exemplar e credível; 2) ter capacidade para gerar e reforçar adequados índices de confiança social e económica, e; 3) ser fonte de inspiração e motivação para a generalidade dos cidadãos.
Esta correlação entre confiança nas estruturas de governo (na liderança política) e perceções de corrupção é sustentada por exemplo pela Recomendação da OCDE de 2017 sobre Integridade Pública, conforme se mostra no gráfico.
Os dados do gráfico revelam a tendência para os cidadãos reduzirem a confiança (desconfiarem mais) nas suas estruturas de governo (ou seja, das lideranças políticas que lhe estão associadas) à medida que aumenta a sua perceção da existência de corrupção na ação dessas mesmas estruturas de governo.
Como bem sabemos, a realidade mediática portuguesa tem-nos trazido nos últimos anos, com muita frequência, notícias de alegadas práticas de fraude e corrupção, umas mais claras e evidenciadas do que outras, mas na sua maioria associadas a suspeições de conflitos de interesses no exercício de funções de natureza política. Independentemente do desfecho dos correspondentes procedimentos criminais quanto à comprovação efetiva dos crimes sob suspeita, e da punição dos seus infratores, ou seja, da veracidade dos factos objeto dessa mediatização, a verdade é que todo o ruído mediático impacta negativamente os cidadãos na sua perceção sobre o exercício competente, transparente e isento das funções de natureza política e sobre o perfil dos próprios políticos.
Por via destas notícias e do impacto que provocam, os cidadãos vão construindo essa perceção de incompetência generalizada associada à classe e aos líderes políticos, que se tem traduzido numa certa vox populi de que “são todos iguais”, “não querem saber do povo para nada, querem é tacho”, “só se lembram do povo na hora do voto”, entre outros.
Os dados do Relatório 2023 do Eurobarómetro relativo à atitude dos cidadãos face à corrupção dizem que:
- 93% dos portugueses consideram que as práticas de corrupção são comuns;
- 66% consideram que a corrupção aumentou em Portugal nos últimos 3 anos;
- As atividades ou funções onde os portugueses consideram existir mais corrupção, suborno e abuso de poder são precisamente os da ação dos partidos políticos e o exercício de funções políticas.
É claro que os resultados destes inquéritos de perceção da corrupção refletem sobretudo os diversos casos de suspeição que têm sido mediatizados no nosso país, e que são sobretudo de natureza política, como se referiu.
Todavia e independentemente de os líderes políticos serem mais ou menos competentes em termos de integridade, a verdade é que eles são produto da mesma sociedade de que todos fazemos parte, e que, por isso, o mais provável seja que tenham características semelhantes à da generalidade das pessoas. Uns, a maioria, serão eticamente mais competentes, e outros, uma minoria, menos, na certeza de que ninguém é perfeito.
As generalizações têm sempre efeitos perversos: são redutoras; dificultam a visualização do individuo concreto, para, em seu lugar, fazerem surgir alguém abstrato, neste caso só com características negativas. As generalizações também são injustas!
Nas circunstâncias atuais, um dos problemas que podemos vir a enfrentar passa pelo risco de uma perda efetiva de qualidade das futuras lideranças políticas. A democracia está exposta ao risco de as futuras lideranças poderem ser tendencialmente menos competentes, incluindo sobretudo quanto à componente da integridade.
E a questão parece ser muito simplesmente a seguinte: quem, sobretudo tendo uma posição profissional, económica e social estável e tranquila, muitas vezes com remunerações superiores à média salarial associada ao exercício de funções políticas, estará motivado para, nestas circunstâncias, se candidatar ao exercício ou aceitar o convite para exercer uma qualquer função de natureza política? Provavelmente poucos e cada vez menos, arrisco a responder.
Estamos perante um possível risco de o futuro nos trazer perda de qualidade, incluindo na componente da integridade, nas lideranças políticas e na gestão dos nossos interesses coletivos, no que se tornaria numa espécie de espiral negativa entre incompetência, má gestão, conflitos de interesses, fraude e corrupção.
Não estou a sugerir, nem a defender, que a mediatização das situações de fraude, corrupção e todas as formas de má gestão pública (incluindo a função da natureza política) não deva suceder. Não! A democracia e o interesse dos cidadãos (os nossos interesses coletivos) requer e exige essa dimensão de transparência. Ela é fundamental!
A este nível o que se poderá e deverá reclamar (e a sociedade civil tem aqui um território e um papel muito importante) passa pela exigência permanente e rigorosa sobre o cumprimento dos mesmos critérios de ética, deontologia, integridade, isenção, rigor, objetividade, fundamentação e sustentação para o exercício das atividades políticas e também para as jornalísticas e comentadores político.
Afinal de contas, a integridade é um dever de todos!