António Maia , Visão online
O mundo português estava ali centrado. Preso, mesmo! O resto não existia e por isso não interessava.
Jesus desceu à terra!
Parece litúrgico e, em certo sentido, foi (e continua a ser) litúrgico! O ato, o regresso de Jorge Jesus para voltar a treinar o Benfica, conteve muitos dos elementos próprios de um ritual litúrgico. Jesus, pois é esse por coincidência o seu nome, regressou a Portugal ao final da manhã desta terça-feira (21 de Julho) e uma verdadeira multidão de adeptos do clube e de jornalistas lá estavam, sobretudo os primeiros, coladinhos à rede do aeródromo de Tires com os seus adereços clubísticos devotamente a adorar o Senhor. Com sinais de total entrega espiritual, de alma e coração, esperando dele um simples sorriso ou um aceno que fosse, como uma espécie de sinal divino do seu (renovado) Deus.
Antes de continuar esta reflexão devo deixar duas manifestações de interesse. Uma na qualidade de adepto do mesmo clube (do Benfica) e outra na qualidade de cidadão deste país. Por um lado, elas são as linhas mestras desta reflexão e, por outro, como têm naturezas distintas – a primeira é de cariz eminentemente emocional e a segunda, apesar de conter também uma dimensão emocional, apresenta uma componente importante de racionalidade – admito que possam influenciar-se entre si e retirar alguma objetividade e clarividência na análise que procurarei explanar nas próximas linhas, e que de certa forma já abordei anteriormente, em 2014, em "Meia bola e força". (Agora, ao reler esse texto de há seis anos, confirmo uma certa perceção de que, enquanto sociedade, não mudámos rigorosamente nada).
Bom, mas continuemos com a reflexão.
Como disse, a meio da manhã de terça-feira, um dia de teletrabalho igual a todos os outros que o antecederam neste designado “novo normal” profissional, liguei a TV para saber notícias do país e do mundo, designadamente para saber da evolução dos dados da pandemia e também para saber da evolução e dos resultados, se já existissem, da cimeira europeia que se arrastava teimosamente há alguns dias no sentido de se definir qual o valor e as condições dos apoios financeiros a conceder aos Estados-membros para fazerem face à pandemia e para estimularem a recuperação económica, algo que me parece verdadeiramente importante para o futuro do país e, por isso, também necessariamente importante para as nossas vidas individuais e familiares. Sabia ainda que, na mesma manhã, estava a ser apresentado publicamente o relatório Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030, documento que, com mais ou menos nuances, acabará por ter uma importância relevante para o futuro coletivo de menorização dos efeitos da crise que por aí vem. Por isso também procurava elementos do conteúdo da apresentação pública deste documento.
Bem sei que todos estes elementos são divulgados, explicados e até contraditados sob os mais diversos ângulos, desde o político, passando pelo social, até ao económico, em diversas ocasiões e fóruns e que, provavelmente, no final ficaremos a saber deles pouco mais do que nada. Porque eles não dizem tudo. Porque quem os conhece mais detalhadamente não nos diz tudo sobre eles. Porque têm conteúdos enfadonhos. Porque tecnicamente ultrapassam os conhecimentos da maioria de nós. Porque simplesmente temos a noção que as decisões que os nossos políticos e governantes tomam lhes são de alguma forma impostas de fora, pelos poderes europeus. Porque se o dinheiro vem da Europa “porque raio não há-de a ser a Europa a decidir o que temos de fazer com ele”. Porque, como diz o povo já em jeito de remate de conversa, “dêem as voltas que quiserem, no fim vai parar sempre aos bolsos dos mesmos”.
E se calhar é um pouco por tudo isto que muitos preferem o futebol, no exemplo de hoje o Benfica e Jesus, o renovado salvador, o Messias que traz o futuro. Porque neste plano a linguagem é mais facilmente compreendida por todos. Porque todos sentem estar a participar nalguma coisa em que estão emocionalmente envolvidos, como explica Desmond Morris em “A tribo do futebol”. Porque as emoções são fortes e estão sempre lá, à flor da pele. Porque afinal o sentido da vida se joga na bola que entra ou teima em não entrar. Porque, assim como assim, tudo o resto é decidido longe, muito longe do cidadão comum, ainda que tais decisões tenham uma relação muito direta com a vida de cada um.
E se calhar é também por isso que a comunicação social acaba por embarcar e fomentar toda esta dinâmica. Porque afinal de contas o mais importante é manter o “share” e a audiência. Porque se a audiência se perde lá se vai a publicidade e, com ela, as fontes de receita. Porque sem receitas o negócio tem de fechar as portas. Porque “se o negócio fechar as portas vamos todos para o desemprego”.
Enfim é o mundo que temos e foi nele que embati na manhã de terça-feira quando liguei a TV e fui passando sucessivamente de canal. Dos mais aos menos generalistas, todos (sem exceção!) passavam as mesmas imagens, acompanhadas por comentários dispersos e por histerismos dos adeptos – “agora com o Jesus é que vai ser!!!” – e ali ficaram (e ali fiquei, sem opção) uma boa meia hora ou talvez mais, a que se seguiu um outro tempo, também longo, de comentários em estúdio, de comentadores encartados nestas coisas da bola, no afã de procurar explicações mais ou menos rebuscadas para um facto que na realidade e em meu entender se explica de forma muito clara e simples com meia dúzia de palavras. O Benfica tem um treinador novo, que retorna ao clube alguns anos depois de ter saído. (Agora, se me é permitido, entro com o meu lado exclusivamente emocional para lhe desejar felicidades na medida em que isso significa resultados positivos para o “meu Benfica”). Do meu ponto de vista não há aqui mais nada verdadeiramente importante a ser explorado e a justificar todo aquele aparato. Nada!
Mas o mundo português estava ali centrado. Preso, mesmo! O resto não existia e por isso não interessava. “Queres saber se há mais ou menos casos de Covid? Se a cimeira europeia já chegou a resultados? Quanto dinheiro é que Portugal irá receber para estimular a economia? Que propostas estão a ser apresentadas para sustentação futura da economia e da sociedade? Tens de esperar, que isso agora não interessa nada!”
Confesso alguma tristeza de alma relativamente a todo este enquadramento em que a nossa sociedade persiste mergulhada, sobretudo por não sentir sinais de mudança. Por não sentir a mais ténue reação. Por sentir que a sociedade civil, um elemento tão importante para um desenvolvimento sustentado e equilibrado, como é reconhecido pela OCDE na Recomendação sobre integridade pública, está amorfa. Que não se envolve nem reage às questões que verdadeiramente tocam e afetam a qualidade de vida de cada um.
É claro que a evolução social é um processo naturalmente lento que se constrói e sedimenta a todo o tempo, com a participação mais ou menos envolvida de todos. E que por isso todos (todos sem exceção!), mesmo os que se determinam consciente ou inconscientemente mais discretos, são peças integrantes e importantes dessa dinâmica. Desse processo e dessa estrutura evolutiva. E que o papel e a capacidade interventiva da sociedade civil, dos cidadãos e da cidadania, decorre do envolvimento das pessoas nas questões que lhes dizem respeito. Das questões que as afetam e também daquelas que afetam a vida daqueles que as rodeiam. Este é um processo em que ninguém está de fora. Em que ninguém pode nem deve autoexcluir-se.
Nesta dinâmica, a educação revela-se um elemento fundamental no processo formativo do cidadão e da cidadania, tendo em vista formar, dar ferramentas para discernir e avaliar em consciência, para uma participação responsável na vida coletiva. Para o envolvimento e participação no debate positivo, colaborativo e responsável sobre os temas de interesse de todos. As estruturas do Estado têm responsabilidade neste âmbito! Devem ser elas, nomeadamente no âmbito das políticas públicas educativas, a dinamizar projetos, formas, modelos e instrumentos promotores de uma cidadania responsavelmente mais ativa, mais envolvida, mais comprometida com as questões de interesse comum.
Infelizmente Portugal revela ainda sinais muito débeis (anormalmente fracos, nomeadamente se comparados com outras sociedades europeias do séc. XXI) quanto à capacidade da sociedade civil em se envolver verdadeiramente, com paixão, nas questões coletivas. Diversos estudos têm revelado essa fragilidade. Destacamos por exemplos os relatórios do instituto V-Dem (Relatório V-DEM 2017, Relatório V-DEM 2018, Relatório V-DEM 2019, Relatório V-DEM 2020), da Universidade de Gotemburgo ,que avaliam os índices de democraticidade das sociedades, onde se inclui precisamente, de entre outras, uma componente associada ao envolvimento e participação da sociedade civil nas questões de interesse coletivo, incluindo nos processos políticos, relativamente à qual Portugal surge com índices tendencialmente baixos e em queda, passando da posição 37 em 2017 para a posição 50 em 2020 no contexto dos diversos países estudados. Resultados semelhantes são revelados pelo recente Estudo Youth political participation in the EU: evidence from a cross-national analysis que evidencia sinais de um menor envolvimento dos jovens nas aitividades políticas, colocando Portugal no grupo de países com valores mais baixos. A própria evolução das taxas de abstenção nas eleições legislativas, a par do que sucede com os demais atos eleitorais, denota um afastamento, um desinteresse das pessoas relativamente ao processo de escolha das lideranças políticas, como atesta o quadro que deixamos abaixo.
Temos todos de fazer mais por nós próprios! De nos envolvermos mais nas questões de interesse de todos! É do nosso interesse comum! De outro modo, como tem persistido, uns (poucos) decidem por todos e isso verdadeiramente fica aquém do que deve ser uma democracia plena e madura.
Os portugueses (independentemente de serem ou não do Benfica) merecem uma democracia mais robustecida, participada e madura!
por todos e isso verdadeiramente fica aquém do que deve ser uma democracia plena e madura.
Os portugueses (independentemente de serem ou não do Benfica) merecem uma democracia mais robustecida, participada e madura!