Nuno Magina, Jornal i

Portugal tem até 17 de dezembro de 2021 para transpor para o direito nacional a diretiva europeia sobre o regime de proteção de denunciantes – Diretiva (UE) 2019/1937

Em dezembro de 2019, o Governo anunciou uma medida há muito esperada para o combate de um flagelo histórico da sociedade portuguesa: a criação de um grupo de trabalho, na dependência direta da Ministra da Justiça, para a definição de “uma estratégia nacional, global e integrada de combate à corrupção, que compreenda os momentos da prevenção e da repressão, e que envolva a participação de diferentes entidades e profissionais”. Mas, surpreendentemente, o comunicado do Conselho de Ministros listou os objetivos do grupo de trabalho sem mencionar uma única vez o regime de proteção de denunciantes.
Surpreendente, porque Portugal tem até 17 de dezembro de 2021 para transpor para o direito nacional a diretiva europeia sobre este regime – Diretiva (UE) 2019/1937. A diretiva trata de muitos outros domínios legais, mas convenhamos que a corrupção ocupa um lugar cimeiro no nosso país. Seria expectável que este novo quadro normativo fosse um dos vetores da anunciada estratégia nacional, ao invés de ser redigido de uma forma desgarrada num gabinete ministerial. Nem que seja pelo facto de a denúncia ser inequivocamente um meio eficaz para desmascarar corrupção. De acordo com o relatório relativo a 2018 da Association of Certified Fraud Examiners, em 2 690 casos de fraude analisados, 40% foram detetados através de denunciantes, muito à frente de qualquer outro sistema de controlo.
A diretiva estabelece normas mínimas para a proteção dos denunciantes que, trabalhando no setor público ou privado, alertem para eventuais violações do direito da União Europeia. Por exemplo, nas áreas da contratação pública e da proteção de dados. Contudo, Portugal pode e deve ir mais longe para salvaguardar todas e quaisquer denúncias de corrupção. Tal como indicado na diretiva, “os Estados-Membros poderão decidir alargar a aplicação das disposições nacionais a outros domínios a fim de assegurar a existência de um regime de proteção dos denunciantes abrangente e coerente a nível nacional”. Mais um motivo para a intervenção do grupo de trabalho não poder ser descurada. Não basta copiar a diretiva, é preciso analisar os riscos de corrupção e ponderar soluções abrangentes.
Seria no mínimo estranho ter regimes completamente diferentes para duas denúncias de corrupção de foros legais distintos. Um denunciante relativo a um processo de contratação pública, sob a alçada do direito europeu, seria protegido e apoiado. Um outro, não abrangido pelo âmbito de aplicação da diretiva, por exemplo no contexto dos famigerados “Vistos Gold” ou mesmo de competições desportivas, poderia ser perseguido e vítima da sua própria coragem. O país não se pode acomodar a tal risco.
A transposição da diretiva vai encetar um regime praticamente novo em Portugal. Em muitos outros países não será assim. Por agora, o único dispositivo do sistema jurídico português refere-se aos trabalhadores da administração pública e de empresas do sector empresarial do Estado que denunciem os factos de que tenham conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas. Muito pouco, na opinião da Transparency International. De acordo com um estudo publicado em 2019 sobre os regimes de proteção em vigor nos países da União Europeia, Portugal faz parte do grupo com um sistema de proteção fraco. O país parte assim bastante atrasado.
Para mim, constitui ainda uma grande incógnita como é que, de 2021 em diante, se vão analisar as denúncias?
Sim, porque não basta proteger os denunciantes, também é preciso avaliar e investigar as alegacões. Sem que haja recursos e meios adequados será praticamente impossível tornar este regime eficaz. Muitas instituições públicas, como a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Judiciária, já se queixam presentemente da falta de meios, quanto mais quando o novo regime estiver em vigor. A missão tão valiosa do grupo de trabalho no combate à corrupção arriscar-se-ia a não sair do papel. Na realidade, Portugal precisa desesperadamente do contrário!