Ana Clara Borrego , Visão online
É, pois, neste ponto, caros leitores, que a leitura do programa do novo Governo se torna bastante interessante, digno de me deixar estupefacta e incrédula com o seu conteúdo: no programa governativo encontram-se várias referências ao “alívio fiscal” sentido pelas famílias portuguesas, bem como pelas empresas, nos últimos quatro anos!!
Caros leitores, não resisto a partilhar convosco uma pequena parte da minha reflexão crítica, resultante da leitura e análise ao programa do novo governo para a próxima legislatura, na vertente dos impostos.
A fiscalidade, ainda que não seja temática de eleição da maioria dos cidadãos, é a coluna dorsal dos programas de governo, bem como dos respectivos orçamentos do Estado, que desses programas advêm; é, pois, indispensável que comece a ser percepcionada como matéria de interesse geral, ainda que não seja por questões de cidadania, que seja pela consciência de que todas as medidas equacionadas pelos governos são suportadas pelos cidadãos através dos impostos pagos, ou seja, têm impacto no orçamento familiar de cada um.
Cada vez mais, é imprescindível que o cidadão se torne crítico do ponto de vista fiscal, pois as medidas do Estado, independentemente da sua índole, que envolvam meios monetários, que a maioria de nós se habituou a imaginar suportadas por um ente, mais ou menos indefinido, incorpóreo e intangível, denominado Estado, na verdade são suportadas por todos nós cidadãos-contribuintes.
Na atual conjuntura, quaisquer propostas governativas, que impliquem aumentar o investimento num determinado sector, só podem ser suportadas através de uma de três vias: desinvestimento num outro sector (cortes orçamentais), aumento da dívida pública, ou amento dos impostos pagos pelos contribuintes. Naturalmente, que nenhuma daquelas três vias enumeradas auguram nada de bom para a sociedade, mas tenhamos consciência que os orçamentos do Estado funcionam como uma espécie de puzzle onde se estabelece a dimensão daquelas três “peças” e o seu formato de encaixe.
Durante largos anos, os sucessivos governos, pressionados pelo aumento da despesa do Estado social, apostaram no aumento da dívida pública, o que veio a culminar com a intervenção da Troika em Portugal. Sob a mira da Troika e das instancias Europeias, nos anos mais recentes, os governos, impossibilitados de continuar a fomentar o aumento desmesurado da divida pública, têm apostado no aumento das outras duas “peças” do puzzle, isto é, no desinvestimento em serviços essenciais, como a saúde, a educação, entre muitos outros, bem como, no aumento da carga fiscal sobre os contribuintes.
Neste ponto, os leitores deverão estar a questionar-se se não haverá forma de sair desta espécie de círculo vicioso? Efectivamente, existe, todavia, não há coragem política para o fazer. Só um combate efectivo à corrupção e o encetar de reformas estruturais no Estado poderiam criar condições para cortar as famosas “gorduras” do Estado onde as mesmas sejam, verdadeiramente, desnecessárias, permitindo uma boa gestão dos dinheiros públicos.
O programa do novo governo não permite antever nenhuma reforma estrutural, nem outra coisa seria espectável num governo sem maioria. Todavia, ainda que de um governo maioritário se tratasse, aos nossos governantes tem faltado, independentemente da sua “cor” partidária, a coragem exigida para realizar reformas estruturais, bem como a vontade de apostar em reestruturações de grande porte no sector público, cujos efeitos imediatos potencialmente sejam pouco populares e cujos resultados práticos positivos extravasem a legislatura para a qual foram eleitos.
Não existindo no programa governativo estratégias fortes para o combate à corrupção, nem nenhuma previsão de realização de reformas estruturais e, assumindo, o próprio governo, como certo, o aumento das despesas correntes do Estado - no programa pode ler-se: “Diversas decisões já tomadas, nomeadamente no Orçamento do Estado de 2019, contribuirão para o aumento da despesa corrente” - perante este cenário, é inevitável que os próximos orçamentos do Estado, na sequência do que aconteceu nos anos prévios, venham a compensar o aumento previsto na despesa pública corrente com desinvestimentos em alguns sectores, bem como, com o aumento da carga fiscal. Evidentemente, não esperava que o programa do governo assumisse de forma clara e explícita esta realidade, mas, simplesmente que encontra-se forma de a camuflar.
É , pois, neste ponto, caros leitores, que a leitura do programa do novo Governo se torna bastante interessante, digna de me deixar estupefacta e incrédula com o seu conteúdo: no programa governativo encontram-se várias referências ao “alívio fiscal” sentido pelas famílias portuguesas, bem como pelas empresas, nos últimos quatro anos!!! E continua o documento, profetizando para a próxima legislatura “Uma política de maior justiça fiscal e que continuará a reduzir o esforço fiscal sobre famílias e empresas”!!
Perante tais afirmações no programa do governo, vejo-me obrigada a questionar:
Será que o programa do governo está certo e os dados do INE, do Banco de Portugal e da OCDE, no que concernem ao aumento da carga fiscal sobre os Portugueses nos anos pós-crise, estão todos errados?
Será que a Comissão Europeia errou redondamente nas suas previsões, quando veio, recentemente, alertar que previa que Portugal, em 2020, atingisse mais um novo recorde histórico no aumento da carga fiscal sobre os contribuintes, mantendo, inclusivamente a tendência dos últimos anos de aumento da carga fiscal superior ao crescimento da economia?
Como é evidente, não acredito no desagravamento fiscal anunciado no programa governativo para a próxima legislatura (nem senti o “alivio fiscal” na legislatura anterior), todavia, a curiosidade induziu-me a procurar, no referido programa, os sectores onde estariam a equacionar realizar novos cortes orçamentais para sustentar o alegado “alivio fiscal” anunciado e, sem grandes surpresas, encontrei propostas de cortes na saúde, educação, defesa e património do Estado.
Caros leitores, creio que os cortes naqueles sectores vão, de facto, concretizar-se, não, evidentemente, para suportar a descida de impostos sobre os contribuintes, na qual não acredito (e creio que os leitores, também, não), mas para comportar parte do aumento da despesa corrente do Estado, resultante de promessas concretizadas na legislatura anterior, assim como, de algumas cedências que o novo governo se veja compelido a realizar, em virtude dos acordos com outros partidos, para aprovar, nomeadamente, os futuros orçamentos do Estado.
A grande questão que me coloco e com a qual vos deixo, é se queremos, ou melhor, se o país consegue suportar, mais cortes “cegos” naqueles quatro sectores?