Antonio Carlos Hencsey, Revista Inspire-c (Edição 11 - Ago/Set. de 2019)

A lógica não era a utilidade? A moral não dizia que minimizar o sofrimento era o certo a se fazer?
O que acontece, então?

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Você não é mais o leitor deste texto. A partir deste momento foi promovido a condutor de um bonde que ao descer uma ladeira perde os freios e vem ganhando velocidade a cada metro que avança. Não adianta tentar parar o bonde, pois não conseguirá fazê-lo. Está completamente sem controle e a sua única opção é aguardar para que ele freie sozinho ao chegar no final de sua linha. Ocorre que justamente ao término deste caminho existem 5 trabalhadores que estão desavisadamente fazendo o seu trabalho sem ter ideia do perigo que os aguarda. Com a velocidade que o bonde vem alcançando você fatalmente matará os 5 trabalhadores antes que consiga parar o veículo, fato sobre o qual a princípio não tem controle nenhum. Note que eu disse à princípio, pois a poucos metros dos trabalhadores você percebe que existe um desvio. Uma possibilidade de mudar a rota do bonde com o movimento de uma alavanca, levando-o a um caminho alternativo salvando a vida dos cinco trabalhadores, porém matando um trabalhador que estava nesta rota fazendo seu serviço. Qual caminho você escolheria? Seguiria a trilha original do bonde matando as cinco pessoas ou desviaria para o caminho secundário matando uma?

Esse famoso dilema ético foi proposto neste modelo por Philipa Foot em 1967, tem como objetivo avaliar e desafiar a ótica utilitarista da moral e assim vêm sendo discutido ao longo dos anos em cursos de ética e filosofia. O que parece mais correto para você, leitor, matar uma única pessoa ou cinco e porque essa decisão deve ser tomada?

Quando aplico esse dilema em salas de aula ou palestras raros são os casos onde pessoas escolhem manter o caminho original do bonde. É quase absoluto o número de respondentes que opta por mexer a alavanca e mudar a rota do veículo matando uma única pessoa ao invés das cinco originais. E da mesma forma é integral a motivação para essa escolha: a questão numérica. A lógica utilitarista de salvar um maior número de pessoas, de impactar um menor número de famílias e de trazer menos sofrimento é de longe o argumento mais apresentado em todas as sessões onde aplico esse exercício.

Agora gostaria que você aposentasse o seu boné de condutor de bonde e imaginasse que está aproveitando um belo momento em uma cidade repleta de lindas montanhas. Como turista, está sobre uma ponte que se posiciona acima de uma linha férrea e você olha para as belas elevações onde vê os carros de um bonde subindo lentamente. Subitamente o último carro do bonde se solta, vazio vem descendo a montanha sem ninguém que pudesse controlá-lo. Você percebe que ele vai ganhando velocidade conforme ganha a descida e curioso olha para onde esse caminho vai dar, virando-se para o outro lado da ponte. Neste momento percebe algo assustador. O bonde em alta velocidade passará por baixo da ponte em que você está e atropelará cinco trabalhadores que estão distantes no final da linha. A tragédia parece certa, mas de repente você percebe um indivíduo de grande massa corpórea parado ao seu lado observando a mesma cena. Rapidamente você chega a uma conclusão, e nesse momento você precisa acreditar no que eu digo sem nenhuma ressalva: Você percebe que pode emburrar o cidadão corpulento da ponte e ele certamente cairá no ponto certo do trilho para frear o bonde desgovernado, acabando com a ameaça iminente e salvando a vida de cinco trabalhadores. Antes que você pergunte, já respondo: Sim, o homem que você empurrou morrerá para salvar a vida dos cinco profissionais da ferrovia. É a morte de um para salvar a vida de cinco.

Ao trazer essa questão para a sala de aula, treinamentos e palestras o quadro se inverte. Raras são as pessoas que erguem suas mãos e dizem que optariam por empurrar uma pessoa da ponte matando tirando uma vida ao invés de cinco. A questão que segue é: Qual a diferença entre os dois casos? Por que em uma situação ir para uma trilha secundária mantado uma pessoa ao invés de um grupo maior parece a melhor opção enquanto no segundo caso empurrar a pessoa da ponte tirando uma vida para salvar cinco parece tão errado? A lógica não era a utilidade? A moral não dizia que minimizar sofrimento era o certo a se fazer? O que acontece então?

Quando questiono excessivamente as pessoas com as quais converso sobre esse dilema chega um momento onde elas concluem que de forma geral ambos os cenários são similares. O argumento de que o homem empurrado da ponte não queria morrer para salvar a vida de outros se equivale ao homem que trabalhava solitariamente nos trilhos que também não desejou “salvar a pátria”. A visão de que no primeiro caso o “salvador de vidas” não tinha saída e precisava virar a alavanca por estar diretamente envolvido no cenário enquanto no segundo ele era um mero expectador também é refutada, pois não mudar o bonde de caminho também era uma opção, e mesmo não havendo a intenção de matar, essa é uma consequência direta do comportamento emitido. Por fim, existe o argumento de que empurrar alguém da ponte é errado, tem dolo, torna o sujeito responsável pelo homicídio, enquanto no outro caso não há ilicitude, pelo menos não tão grave uma vez que como condutor do bonde foi preciso tomar uma decisão e assim, virar a alavanca é o certo a se fazer. É aí que vemos um ponto interessante e a riqueza deste conflito, pois na primeira versão do dilema era salvar cinco pessoas em detrimento de uma que fazia a ação moralmente correta, somente isso, algo que parece não fazer mais tanto sentido agora para os respondentes.

Sob a ótica de muitas das discussões filosóficas que presenciei, ao final deste momento de argumentação vemos um questionamento ao utilitarismo como tratado no senso comum, resultando na conclusão proposta por alguns filósofos, inclusive utilitaristas, de que existem coisas que não podem necessariamente ser colocadas friamente em uma balança, como o valor de uma vida, por exemplo. A lógica do maior bem para o maior número de pessoas pode ser aplicado em determinados contextos, mas nem sempre a decisão, se aplicada cegamente trará a melhor opção. Vejamos como exemplo o coliseu de Roma, onde pessoas eram colocadas para morrer de forma cruel a fim de alimentar a política de pão e circo. Era um evento onde a morte de um trazia entretenimento para centenas, talvez milhares, mas isso não faz da ação algo correto.

E é nesse ponto que um viés criminológico da moralidade pode contribuir com a filosofia. Complementando a principal preocupação com as consequências éticas e morais dos atos, a criminologia trabalha esse mesmo dilema do bonde a partir da forma como o indivíduo percebe os dois cenários e como constrói racional e emocionalmente uma lógica que chega, normalmente aos mesmos comportamentos apresentados na aplicação de leitura filosófica, porém por diferentes motivos.

Calma, eu explico. Na criminologia avaliamos o cenário a partir das escolhas feitas entre uma maioria que prefere virar a alavanca do bonde e ao mesmo tempo mostra resistência para empurrar a pessoa da ponte. Quais as causas desta diferença perceptiva e como se aplicam em diferentes contextos?

A chave está no distanciamento oferecido por uma ferramenta, aqui chamada de alavanca a qual permite que o ser humano perceba, tanto biologicamente como psicologicamente a primeira versão do dilema como menos errada ou agressiva do que a segunda. Ao utilizar um recurso mecânico e, a partir deste, matar uma pessoa temos uma barreira entre o indivíduo e o homicídio, algo que não ocorre ao empurrar alguém diretamente da ponte. Essa proximidade da ilicitude, colocar as mãos no futuro morto impacta diretamente na auto percepção de honestidade do ser humano e, desta forma impede que haja um processo não consciente de racionalização que permite uma justificativa interna de que o ato foi necessário ou pelo menos não tão errado na determinada circunstância. A riqueza desse dilema e seus desdobramentos criminológicos e psicológicos é que através desse ponto podemos perceber uma série de ações do dia a dia que são decididas partindo deste viés. Na minha prática profissional já vi casos onde executivos, através de alterações indevidas de números em planilhas chegaram em resultados fantásticos, e decorrente desta ação ilícita, garantiram seus bônus muitas vezes milionários, porém essas mesmas pessoas mostram repulsa por atos apropriação indevida direta de dinheiro. Isso significa que ver os números de sua conta bancária aumentarem ilicitamente através de um teclado, uma tela e uma planilha excel é mais fácil do que abrir uma gaveta, cofre ou qualquer outro local, colocar a mão em um dinheiro que não lhe pertence, colocá-lo no bolso e ir embora. Mesmo que essa quantia em papel moeda seja menor do que a recebida de forma burocrática.

O mesmo pode se dizer sobre questões de Estado. Ao longo da história, muitos líderes de nações que ao darem um sinal verde permitiram a explosão de uma bomba ou ataques extremamente danosos matando centenas ou milhares de civis não seriam capazes de, pessoalmente, apontar uma arma a um indivíduo desarmado e executá-lo. O botão que libera a bomba ou permite a transmissão de uma autorização para a destruição em massa distancia o individuo de sua responsabilidade e com isso permite que seu comando seja dado sem que ele próprio se sinta o carrasco.

E o que pensar então sobre a nossa sociedade brasileira, muitas vezes tão injustamente descrita como uma das mais corruptas ou antiéticas do mundo. “Injustamente?!” pode estar dizendo algum leitor mais impulsivo. Se analisarmos pela ótica do dilema do bonde sim. Logo vemos que não somos tão diferentes assim de outras culturas e países vistos como exemplos de comportamento honesto. Enquanto sujamos nossas mãos com o crime organizado, corrupção entre outros crimes que nos desabonam, nações vistas como éticas lavam o nosso dinheiro e permitem direta e intencionalmente que toda a roda da ilicitude brasileira ocorra. E tudo isso conscientemente. Sem surpresas. A diferença é que nós empurramos o homem pesado da ponte enquanto eles viram a alavanca. Talvez nesses países um celular moderno perdido em ambiente público será devolvido, ou as pessoas possam andar tranquilas e sozinhas de madrugada, algo que não podemos em todos os lugares por aqui, mas pensem do ponto de vista do dilema do bonde, será que esse distanciamento da agressão e violência por um viés burocrático e de colarinho branco não nos dá uma impressão errada sobre a ética e moralidade? Isso nos mostra que não somos piores e eles não são melhores. Essa leitura nos mostra que as ações próximas da destrutividade nos faz sentir mais violentamente os efeitos do impacto do bonde em que estamos, mas não quer dizer exatamente que as ações dos demais, inicialmente menos agressivas não tenham consequências igualmente danosas.

Sabe, acredito que o certo e o errado no comportamento humano é algo complexo, mas o bacana de refletirmos sobre ética, moral, comportamento é a riqueza que este conteúdo possui. Sem caixas, sem pré-julgamentos ou verdades absolutas é necessário refletir e às vezes por que não se divertir com o tema buscando diferentes vieses sobre vereditos que nos parecem certezas. Essa para mim é uma das grandes contribuições do dilema do bonde, uma forma de desafiar percepções e jogar com dúvidas e fatos constituídos mostrando que agir da forma certa às vezes pode ser menos certeiro do que se imagina.