Ana Clara Borrego, Visão online

A matéria fiscal é uma das áreas onde a “reserva” de soberania se manteve inalterada desde a génese da criação desta organização de Estados, acautelada pela regra da unanimidade, obrigando os EM a reunir consensos, a negociar e a fazer concessões, para ser possível deliberar sobre matérias fiscais

A integração de Portugal, em 1986, como Estado Membro (EM) da, então, CEE, atualmente União Europeia, implicou que o país abdicasse de parte dos seus poderes soberanos a favor daquela organização, tal como já havia ocorrido com os países pioneiros nessa adesão, bem como com aqueles que só o fizeram posteriormente; encontrando-se, quer o tipo, quer a extensão dessas transferências de soberania dos EM para a União Europeia vertidas nos tratados Europeus.

Como se depreende do que atrás escrevi, há algumas áreas em que os Estados Membros mantêm, no todo ou em parte, a sua soberania, quer por se tratar de áreas cujas deliberações são exclusivamente do foro interno, quer nos casos em que a discussão e votação extravasam a jurisdição interna para a Europeia, mas que, relativamente às quais, são obrigatórias votações unanimes no contexto do Parlamento Europeu.

As decisões em matéria fiscal, por envolverem questões de grande sensibilidade, é uma das áreas onde a “reserva” de soberania se manteve inalterada desde a génese da criação desta organização de Estados, acautelada pela regra da unanimidade, obrigando os EM a reunir consensos, a negociar e a fazer concessões, para ser possível deliberar sobre matérias fiscais, uma vez que as votações naquelas matérias, no seio da UE, têm, impreterivelmente, de ser unanimes, tal como previsto nos art.ºs 110.º a 113.º do Tratado Funcionamento da União Europeia.

A regra da unanimidade no contexto fiscal tem permitido que nesta questão tão delicada, por estar em causa os orçamentos de cada EM, bem como o Orçamento da própria UE, não seja possível a aprovação de regras fiscais à revelia do interesse nacional de um ou mais Estados Membros.

Todavia, esta regra, que tem permitido manter a soberania fiscal dos Estados, tem-se consubstanciado, simultaneamente, como um travão à criação de novos impostos comuns europeus, problema que se foi acentuando ao longo dos anos, à medida que a União foi alargando com a integração de mais EM, tornando mais difícil, porventura impossível, almejar alcançar votações unanimes, pois a referida regra implica que baste o veto de um único EM (dos, atuais, 28) para impossibilitar a deliberação do Parlamento Europeu nestas matérias. A título de exemplo, refira-se a, recente, tentativa de criação, por parte da Comissão, de uma taxa única europeia sobre as transações financeiras, a qual, foi aprovada por todos os EM, à exceção da República Checa, EM que vetou a taxa, inviabilizando a sua aplicação no território da UE.

A problemática que tem envolvido a impossibilidade de criação de novos impostos únicos europeus, nomeadamente a nível da tributação sobre o rendimento, motivados pela regra da unanimidade e do alargamento da UE, não é uma questão recente, é um problema que se arrasta há décadas, mas que veio a ganhar relevância com o Brexit e a eminente saída do Reino Unido da União, uma vez que a sua saída, vai abrir um “buraco orçamental” no Orçamento Comunitário, o qual é necessário compensar.

Para equilibrar a perda orçamental prevista com o Brexit, a UE tem sob a sua mira a tributação, a nível Europeu, dos grandes gigantes da era digital, isto é, grandes empresas que, na sua maioria, obtém receitas fiscais de montantes muito elevados na Europa, mas que as deslocalizam para outros países com tributações mais “suaves”.

É neste contexto que a regra da unanimidade em matérias fiscais se veio a tornar um grande entrave às pretensões europeias de tributar, através de um imposto europeu, aquelas empresas, devido à oposição interna de alguns países que integram a Comunidade, como a Holanda e o Luxemburgo, que se recusam a abandonar os seus sistemas fiscais mais vantajosos para as grandes multinacionais, onde se incluem alguns gigantes da era digital.

Foi neste cenário que, no início do corrente ano, a Comissão Europeia anunciou junto do Parlamento Europeu a sua pretensão de vir a modificar a regra de deliberação da União Europeia no que às matérias fiscais concerne, alterando a regra atual de unanimidade para uma regra deliberativa de maioria qualificada de votos no Conselho, a qual é, manifestamente, mais fácil de acordar e alcançar.

Na sequência daquela manifestação de intenções por parte da Comissão, o Governo português mostrou a sua abertura e disponibilidade para alteração da regra da unanimidade em matéria fiscal, posição que, na minha opinião, o nosso Governo está longe de poder cumprir, pois qualquer posicionamento da sua parte nos órgãos Europeus nesse sentido viola o estatuído na Constituição da Republica Portuguesa, mais concretamente no seu art.º 165.º, n.º 1, alínea i), no qual se reserva para a soberania interna nacional, mais concretamente para o escopo de competência da Assembleia da República e do Governo, a capacidade para legislar em matéria de impostos, nomeadamente da sua criação, bem como no âmbito da estrutura do sistema fiscal nacional.

Não obstante ser a favor da tributação dos grandes gigantes da era digital, discordo da criação de novos impostos europeus, numa Europa a duas velocidades, com contextos económicos, salariais, de tecido empresarial e orçamentais, entre outros, tão dispares – tratar realidades diferentes de forma igual, na minha opinião, vai acentuar, ainda mais, o fosso, já existente, entre as economias mais ricas e as economias mais pobres da UE.

Esta matéria, dada a sua sensibilidade, tem sido uma das matérias mais polémicas no contexto das eleições europeias, tem, assim, sido alvo dos mais acesos debates, nomeadamente entre os candidatos portugueses, com partidos/candidatos a apresentarem os seus argumentos contra ou a favor da manutenção da soberania fiscal, apresentando-se, essencialmente, os candidatos dos partidos que formam governo como defensores da “queda” da regra da unanimidade em matéria fiscal e os restantes partidos a defenderem a soberania fiscal dos EM, incluindo de Portugal.

.