Pedro Moura, Visão online
“Se os portugueses são tão civicamente corretos relativamente à temática da corrupção, como chegamos a um ponto em que esses mesmos portugueses acham que a corrupção é um problema tão relevante na nossa sociedade?”
Se há um valor prezado em Portugal, esse valor é a coerência. A coerência de opiniões e atitudes sobretudo. A pior acusação que se pode fazer a alguém por lusas bandas é a de ter feito uma afirmação em sentido contrário a uma opinião expressa algures no passado ou de ter tido uma atitude contrária à sua opinião. Os portugueses são um povo de enorme confiança: têm sempre as mesmas opiniões e atitudes. Não mudam. Provavelmente devem ser exatamente as mesmas pessoas, com as mesmas opiniões e atitudes desde a nascença. Não mudam, não aprendem nem desaprendem, não arriscam e não fazem erros, não pioram nem melhoram. São como são.
Exagero, obviamente. Mas a coerência levada ao exagero é para mim pelo menos uma de duas coisas: algo definitivamente a evitar por razões óbvias de saúde mental e, geralmente, uma grande treta. É pela parte da treta que eu enveredo hoje.
Vem este preâmbulo a propósito de um estudo muito curioso com que me deparei, e onde Portugal, para não ser incoerente, mantem a tradição de me surpreender.
O estudo que refiro é o "Global Corruption Barometer" de 2017, o maior inquérito feito à escala mundial sobre a experiência pessoal direta de cidadãos com corrupção no seu dia a dia, com especial enfoque nos Governos (pode ser consultado aqui *1). Elaborado pela Transparência Internacional, merece atenção pela relevância que tem na criação de melhores níveis de consciência em redor do tema da corrupção nos vários países.
Mas deixemos as considerações e subjetividades e avancemos numa linha de raciocínio baseada em dados mais concretos.
O que apresento de seguida é baseado nos dados quantitativos do estudo que refiro acima, e podem ser consultados aqui *2). Dos países constantes no estudo, selecionei apenas um subconjunto de países da União Europeia.
Comecemos pela perceção que os portugueses têm relativamente à importância da corrupção: os portugueses acham que a corrupção é um tema muito importante. Mais de 50% dos inquiridos acha que é um dos três principais temas que o Governo devia endereçar (ver quadro 1 abaixo). Um dos países da UE onde esta preocupação é maior, como se pode observar.
Quadro 1 – Perceção da importância da corrupção em Portugal
De seguida vejamos o que acham os inquiridos relativamente ao papel que o comum dos mortais pode ter na luta contra esse enorme problema que é a corrupção. Do quadro 2 abaixo vemos com alguma surpresa que, de acordo com este inquérito, os inquiridos portugueses são aqueles que mais fé têm no papel do cidadão comum na luta contra a corrupção. Animador.
Quadro 2 – “Cidadãos comuns podem fazer a diferença na luta contra a corrupção?”
Vejamos agora o que dizer relativamente à perceção dos inquiridos sobre a visão da sociedade sobre as denúncias de atos de corrupção. Mais uma vez Portugal se destaca dos restantes congéneres europeus. O quadro 3 diz-nos que ninguém mais que nós concorda ser altamente aceitável (recomendável?) a denúncia da corrupção. Invejável sentido cívico, o dos nossos concidadãos.
Quadro 3 – Aceitabilidade social de denúncias de corrupção
E agora chegamos à minha parte preferida: os portugueses e a sua inclinação para a denúncia de atos de corrupção. Do quadro 4 abaixo vemos que em nenhum outro país da lista há tanta vontade pessoal de denunciar casos de corrupção como em Portugal. Quem são os melhores cidadãos do mundo?
Quadro 4 – Inclinação pessoal para denúncia de atos de corrupção
Por esta altura temos todos os motivos para estarmos satisfeitos. A acreditar na representatividade estatística dos inquiridos portugueses que responderam a este estudo, o nosso país tem tudo o que necessita para enfrentar o problema da corrupção.
Mas... há aqui algo que me morde o cérebro: se os portugueses são tão civicamente corretos relativamente à temática da corrupção, como chegamos a um ponto em que esses mesmos portugueses acham que a corrupção é um problema tão relevante na nossa sociedade?
Como é que inclinações tão moralmente corretas relativamente a esta temática, que certamente gerarão atitudes igualmente moralmente corretas quer na prevenção quer na denúncia da corrupção, fazem com que esta seja algo tão grave para o nosso país?
É caso para dizer que a bota parece não bater com a perdigota.
Por fim, ainda do mesmo estudo, há um dado que talvez nos ajude a perceber as dúvidas que coloco acima. No quadro 5 abaixo pode-se perceber a distribuição percentual das respostas à questão “Porque não denunciam as pessoas atos de corrupção?”.
Quadro 5 – Razões para a não denúncia da corrupção
Achando já ter excedido a minha quota de opiniões subjetivas neste artigo, deixo a interpretação deste último quadro aos leitores, acrescentando apenas um dado que o quadro acima não transmite: Portugal é país (dos analisados por mim) onde a razão “As pessoas têm medo das consequências” atinge maior expressividade percentual de inquiridos.
Será devido à coerência? Ou devido à treta
*1 - Global Corruption Barometer: Citizen's voices from around the world (2017): https://www.transparency.org/news/feature/global_corruption_barometer_citizens_voices_from_around_the_world
*2 - Global Corruption Barometer: Europe and Central Asia Regional Results: https://www.transparency.org/files/content/feature/GCB_ECA_Regional_Results.xlsx