Alexandre Almeida, Jornal i
A predominância de uma cultura de controlo máximo traduz-se num paradigma em que reina a desconfiança e a “presunção de culpa”, gerando custos de transação, barreiras ao acesso e tempos de decisão que põem em causa a eficácia dos próprios instrumentos.
As regras existem para criar estrutura, confiança e previsibilidade no sistema. A vida em sociedade pressupõe essas regras. Mas como bons humanos que somos, de uma forma ou de outra, criam-se regras que nos apressamos a quebrar. Por isso, em qualquer sistema, a primeira preocupação é colocar barreiras e porteiros que dificultem o acesso indevido a qualquer tipo de vantagem. Os fundos comunitários não fogem à regra e num misto de procura pela transparência, de redução da fraude e de demonstração externa de honestidade, procura-se que Portugal seja um exemplo de pureza na sua aplicação. O princípio em si mesmo é bom mas o puritanismo por vezes associado não o é. A busca incessante pelo não erro administrativo conduz-nos a um modelo de implementação assente, essencialmente, num compliance formal, numa histeria documental e numa filosofia de policiamento em que nos esquecemos do verdadeiramente importante, da própria razão para os quais os instrumentos foram criados e sem maior garantia de transparência.
Na prática, não devemos perder o foco sobre o motivo e sobre os objetivos por detrás dos diferentes instrumentos de política. Estes instrumentos destinam-se a promover o efeito incentivo e o efeito adicionalidade, ou seja, existem para estimular a atividade económica, melhorar as condições de vida das populações e reduzir custos de contexto. Sobretudo, o tempo de acesso efetivo aos apoios é uma variável fundamental, sobretudo quando falamos de inovação.
Ao contrário da perceção generalizada, as entidades do Estado fazem o seu melhor e produzem um trabalho de qualidade. Não é uma questão de produtividade individual, mas sim de um colete de forças procedimental que condiciona muito a eficácia e o tempo das análises. A simplificação não pode ser reduzida ao primado da digitalização. Ao invés, tem de significar uma alteração estrutural profunda no modelo de operacionalização e de acesso e ser formativa no sentido de promover uma maior verdade na gestão. Essa verdade não decorre, novamente, do cumprimento estrito das regras. Essa verdade decorre da capacidade de promovermos modelos de governação mais abertos, de sermos consequentes com as estratégias definidas e de sermos inovadores na implementação dos instrumentos de política.
O colete de forças procedimental e a cultura puritana levam a uma menor eficácia na gestão dos instrumentos e dificuldades na inovação dos mesmos. Neste âmbito, darei dois exemplos.
No que diz respeito à gestão dos instrumentos, num país muito dependente da banca no financiamento às empresas, importa fluidificar a execução dos projetos. Tal como no Horizonte 2020, no Portugal 2030 devemos ponderar a implementação ampla e incondicional de um modelo de financiamento com base em cash-flows positivos, com adiantamentos mais significativos e menos condicionados. Tal modelo, para além de previsivelmente acelerar a execução das empresas e instituições, contribuiria à partida para serem ultrapassadas algumas restrições orçamentais. Neste caso, uma filosofia de máximo controlo leva a una implementação tímida e sub-ótima, exigindo esforços desnecessários em termos de tesouraria e desde logo afetando negativamente o impacto dos instrumentos.
Quanto ao caso da inovação nos instrumentos de política, observamos que as evoluções no desenho dos instrumentos não são estruturais, mas pequenas remodelações ao nível da elegibilidade, das despesas, das taxas e das tipologias, mas sem a necessária dinâmica de adaptação a um contexto em mudança. Paradoxalmente, nesse mundo em mudança e com ciclos de inovação mais acelerados e exigentes, os instrumentos de apoio à inovação tendem a ser conservadores e estáticos no tempo. Não obstante, neste período de programação termos bons exemplos de inovação dos quais destacamos os clubes de fornecedores, os laboratórios colaborativos e o Programa Interface, ainda é necessário ir mais além na ambição e ousadia. A este propósito, importa referir o caso da Compra Pública Inovadora.
Este instrumento consiste na utilização do consumo do estado para criar procura por tecnologia, criando um importante estímulo económico às start-ups, mas também apoiando a sua maturação de produto. Quer por via do Orçamento de Estado, quer por via de instrumentos de apoio como o sistema de incentivos à modernização administrativa, existem recursos relevantes que poderiam contribuir de forma significativa para a emergência de setores intensivos em conhecimento. De notar que existe já experiência europeia relevante sendo de mencionar o caso Espanhol. De facto, Espanha já detém uma experiência alargada da sua implementação, estando já na terceira geração. Portugal ainda não foi capaz de o fazer. Talvez porque a sua implementação exige um modelo de escolha e decisão diferente, de maior risco e responsabilidade dos atores e, aparentemente, menos controlável, este instrumento ainda não foi aplicado.
Atendendo a que a transparência e a prevenção da fraude são temáticas centrais na política pública e novamente estarão subjacentes na programação do Portugal 2030, importa aproveitar esta oportunidade para uma maior ousadia e libertação deste jugo. Controlo máximo não é controlo ótimo. Como tal, a predominância de uma cultura de controlo máximo traduz-se num paradigma em que reina a desconfiança e a “presunção de culpa”, gerando custos de transação, barreiras ao acesso e tempos de decisão que põem em causa a eficácia dos próprios instrumentos ou que impedem que se assumam riscos políticos e sejamos verdadeiramente inovadores nos instrumentos de política. Sobretudo importa reter que os ganhos marginais de controlo se fazem à custa da eficácia dos próprios instrumentos e da eficiência do sistema de gestão, desviando a atenção do principal que deve ser sempre o máximo impacto dos instrumentos de política pública.
Em suma, a crescente maturidade social que nos leva a perceber que a fraude é indesejável e contraproducente, também nos deve igualmente impedir de resvalarmos para uma lógica de incapacitação, de desresponsabilização formal e de inoperância que é atentatória do propósito dos instrumentos, das instituições e, sobretudo, limitadora do potencial de desenvolvimento económico.