José António Moreira, Jornal i
Uma forma muito simples de manipulação do défice do Estado passava por protelar os pagamentos aos fornecedores, ou antecipar os recebimentos
Em plenas férias de Verão lembrei-me deste tema da “contabilidade criativa” – como os brasileiros, com o seu delicioso sentido de humor, denominam o tipo de comportamento descrito – a propósito de uma peça jornalística publicada recentemente por um órgão de imprensa escrita. Era relativa a uma investigação a decorrer na Polícia Judiciária e no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) respeitante à eventual responsabilidade criminal de anteriores governantes no caso das adjudicações e renegociações relativas às Parcerias Público-Privadas (PPP).
Parte do processo debruça-se sobre as renegociações ligadas às auto-estradas sem custos para o utilizador (SCUT) efetuadas em 2010, no âmbito de um processo que pretendia dotar a Estradas de Portugal (EP) de receitas próprias com o propósito de retirar a empresa do perímetro de consolidação das contas do Estado e, desse modo, evitar que o respetivo défice anual contasse para o défice do Estado a apresentar à Comissão Europeia e ao Eurostat (e, claro, aos cidadãos).
Embora a investigação procure provas de eventuais vantagens financeiras obtidas no decurso dessas renegociações por alguns ex-governantes nelas envolvidas, o facto é que na origem destas esteve um propósito deliberado, por todos reconhecido, de manipulação contabilística do défice do Estado.
O que até não foi procedimento original. Com efeito, até ao pretérito ano uma forma muito simples de manipulação de tal défice passava por protelar os pagamentos aos fornecedores (por exemplo no setor da saúde), ou antecipar os recebimentos (por exemplo, a reavaliação fiscal do ativo fixo tangível permitida em 2016 e reportada a 2015). Com efeito, o défice efetivo era calculado com base nos pagamentos e recebimentos do ano, no âmbito de regras contabilísticas baseadas no “regime de caixa”. A partir do corrente ano estes truques simples deixarão de poder ser utilizados, por via da alteração das regras contabilísticas dos organismos públicos, que passam a ser baseadas no Sistema de Normalização Contabilística – Administração Pública (SNC-AP), tendo subjacente o “regime do acréscimo”. O que passa a contar é o que o Estado gera de rendimentos, ou os gastos que faz em consumos, independentemente de os mesmos já terem dado origem a recebimentos ou a pagamentos. Um tipo de contabilidade pública parecida com a das organizações empresariais.
Porém, o novo sistema não é isento de janelas de manipulação da informação. Há muitas, pelo que a manipulação vai continuar a existir. Coloca-se, pois, uma questão que já anteriormente deveria ter sido objeto de preocupação da parte do legislador: para quando a responsabilização dos agentes políticos que comprovadamente adotem comportamentos conducentes à manipulação contabilística da informação financeira do Estado?
Num tempo em que tanto se clama por transparência na coisa pública, uma resposta cabal a tal questão seria um importante passo neste sentido.