Henrique Santos, Visão online,
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As recentes atribuições dadas aos advogados (se é que assim se podem chamar), estão muito perto de provocar a alteração da sua designação profissional, de “Advogado” para “Advogado Bufo”.
E não, não é uma nova especialidade na classe, é mesmo a desiganção genérica. Agora vamos ter advogados bufos especialistas em direito laboral, advogados bufos especialistas em direito fiscal, advogados bufos especialistas em direito administrativo e por aí adiante.
Refiro-mo, e sem utilizar grandes referências legislativas, ao facto da transposição para a ordem interna de uma legislação comunitária prever a obrigação dos advogados terem de denunciar os seus clientes, que suspeitem estar envolvidos em branqueamento de capitais (grosso modo). O simples ato de se falar disso deixa-me em pânico.
De facto, é de lamentar que o sigilo profissional a que está obrigado um advogado seja visto como um privilégio da classe e não como um direito do cidadão.
Das duas uma, ou mudam o nome da classe para Advogado Bufo, ou acabam com a profissão. Afinal, se realizarem tal procedimento para todos os crimes tipificados, é muito fácil à justiça culpar uma pessoa, dado que, se o cliente contar os factos de determinado acontecimento ao seu advogado (e já nem falo em suspeitas que este possa ter), obriga este último a ir de imediato contar tuda à justiça e assim fica resolvido o caso. Afinal a prova testemunhal é a rainha das provas, e esta vai servir, de certaza, para o efeito.
O esquema é o seguinte, cometo um crime, conto-o ao meu advogado para ele me defender/representar, e ele vai de imediato denunciar-me e/ou contar ao juíz. Assim sempre é mais fácil a este último tomar uma decisão, sem a polícia ter de investigar.
Não sei que tipo de regime político é esse, mas não é típico de uma democracia.
Na verdade, agora temos dois juízes a quem prestar contas. Ao advogado bufo (que tem de decidir se é relevante denunciar ou não), e ao juíz de direito. Se o primeiro não nos levar à condenação, temos o segundo para ver o que dá.
Antigamente dizia-se que tinha de se contar tudo ao advogado (não podiam existir segredos), para que este melhor nos defendesse/representasse, mas agora é preciso cuidado...
Estarão provavelmente a delirar com a minha estupidez. - Então vens para aqui defender os prevaricadores, não é teu objetivo combater a fraude?, perguntam.
Na verdade tudo é bem mais complexo que isto, mas importa-me neste caso, alertar para o facto de poder estar em causa um direito dos cidadãos, de se defenderem convenientemente. Cabe a outros a investigação e a condenação (se for o caso), não podemos misturar.
Eu costumo dizer que a Lei não é clara, nem objetiva (apesar de muitas vezes o parecer quando a lemos), e a prova disso são os advogados. Pelo facto da Lei não ser clara é que existem os advogados. Uma parte interpreta-a de uma forma, a outra parte de outra, e quem decide é o juiz. Cabe a cada advogado pugnar junto da justiça pela respetiva interpretação.
O papel do advogado é representar o interesse da parte que defende, no natural pressuposto de que essa defesa tenha em atenção a Lei, a ética e a sua consciência (estas últimas por vezes voláteis, ainda que previstas no ordenamento deontológico da classe, que a eles respeita).
Fará algum sentido, em qualquer que seja o crime cometido, que assim não seja?
Eu ainda acredito no Estado de Direito, e no princípio de que todos são inocentes até prova em contrário. Agora que seja o meu defensor/representante jurídico a denunciar-me, é algo que me parece atroplear liminarmente as competências da profissão e a relegam para um estatuto de subalternidade e dependência pouco compatíveis com esta.
O que me deixa mais sossegado é o facto desta legislação nunca vir a ser aplicada (como é óbvio), pois nenhum advogado a cumprirá (nem será punido por isso, porque nunca ninguém descobrirá que este sabia ou desconfiava de algo para denunciar), provando que nem sempre os fins justificam os meios, apesar deste fim último ser de vital importância para todos nós.
Estamos portanto, na minha opinião, perante uma legislação ineficaz.
Vale a pena pensar nisto.
E não... não sou advogado!