Nuno Guita, Visão online,

Partilhar entusiasmadamente uma experiência futebolística conta seguramente para aquelas experiências coletivas que maior cumplicidade gera entre os participantes. Estamos a falar da secreção de hormonas durante mais de 20 horas seguidas, num grupo estanque e em movimento constante, em tudo idêntico ao curso de comandos, só com mais cerveja.

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Honi soit qui mal y pense

Citando a própria GALP, ainda a propósito das viagens à bola, o ”processo dos convites decorreu de forma aberta e pública, sem qualquer segredo ou tratamento diferenciado, e sem que tal pretendesse constituir a atribuição de uma qualquer vantagem patrimonial e muito menos da qual se esperasse a obtenção de qualquer contrapartida” (1).

Comentadores na TV defenderam que “isto se enquadra nos hábitos e costumes de qualquer sociedade civilizada (2)” e “que uma pessoa não [tem] capacidade para exercer um cargo público qualquer (…) se não consegue (…) distinguir o que é uma oferta que o condiciona do que é uma oferta que o não condiciona”.

Houve até um Deputado da nação e Filósofo, Doutor Porfírio Silva, que defendeu a ética dos governantes viajantes por conta da GALP, porque sendo as idas à bola, em público e em grupo, seriam insuscetíveis de constituir favorecimento, pois como se sabe esse é “discreto e até secreto” (3). Aqui chegados, verificamos que, independentemente da censura penal, pelo menos quanto à censura moral, não há consenso – até porque são tudo “bons rapazes”. Envergonhe-se quem nisto vê malícia!

Da má-Governação

Acontece que esta abordagem, ao jeito do Padre Américo – ou, para os mais cínicos, ao de Martin Scorsese – apenas se deve a uma perspetiva tradicional e insuficientemente diferenciada quanto ao que é a má-Governação, quer das empresas, quer das instituições e, no limite, do próprio Estado. Como nos recorda o Dr. Vítor Bento, cit.:” São já demasiados os desastres empresariais, e a destruição de valor económico e social, protagonizados por exemplos de má governação, para que o autocontentamento nesta matéria possa ser tranquilizador e possa ser passivamente aceite pelos poderes públicos e pela sociedade civil” (4). É, pois, bom recordar que todos os “desastres empresariais” foram protagonizados por “bons rapazes” e acabaram como “casos de polícia”.

Categorias de Non-Compliance

Neste âmbito da criminalidade económica e no que à má-governação (ou Non-Compliance) diz respeito, importa distinguir duas categorias (5). Assim, temos a Fraud Against the Company (FAC), que encerra todos os delitos contra o património da empresa, que a prejudicam diretamente e que são cometidos, principalmente, por indivíduos isolados. Distintamente, é o Corporate Misconduct (CM), cuja comissão, em regra, é apenas possível em colusão e, tal como a corrupção, violação das regras da concorrência ou falsidade das contas, cometido a pretexto de “beneficiar a empresa”.

Teoria da agência

Partindo da teoria da agência (6), em que o gestor (sobretudo de topo) tem necessidade em reduzir, de forma eficiente, todas as divergências de interesse e assimetrias informacionais com o subordinado por forma a manter ou até melhorar a relação de delegação com este, busca-se o “espírito de corpo” com o propósito de conciliar objetivos individuais com os organizacionais. Exemplo disso é a componente variável das remunerações alinhada com a definição de objectivos.

Do acordo ao conluio

A oportunidade para cometer delitos empresariais requer sempre a colaboração em conluio. Essa colaboração resulta sempre da existência de um acordo dentro da organização. Porém, o caracter ilícito da colaboração destinada à pratica de delitos corporativos (CM) impede que estes acordos sejam formalizados, pelo que também não são sindicáveis (7). Estes, estabelecem-se assim, tanto ao nível horizontal como vertical, requerendo sempre a aceitação de autoridade ou legitimidade entre as partes. Caracterizam-se pela comunhão de propósitos, no primeiro caso, e pela existência de instruções explícitas ou implícitas, no segundo. Mas, em todo caso, a confiança absoluta entre os autores é o requisito principal, pois, de outra forma, os riscos de denúncia impediriam a sua realização.

Bejecas e confiança

Então como se estabelece esse nível de confiança colusiva e delituosa entre pessoas que, à partida, não se conheciam? Um maior conhecimento pessoal promove a confiança e facilita a identificação dos cúmplices. Por princípio, quanto mais se conhece sobre uma pessoa, melhor se pode avaliar a sua fiabilidade e sobretudo, a sua fidedignidade. Os limites à capacidade de processamento de informação sugerem o recurso a mecanismos de simplificação e heurísticas de decisão. Assim, podemos verificar que certos atributos demográficos como Origem, Formação, Género ou mesmo a Idade, indicam semelhanças pessoais que por si mesmas tendem a promover a confiança. Partilhar entusiasmadamente uma experiência futebolística conta seguramente para aquelas experiências coletivas que maior cumplicidade gera entre os participantes. Estamos a falar da secreção de hormonas durante mais de 20 horas seguidas, num grupo estanque e em movimento constante, em tudo idêntico ao curso de comandos, só com mais cerveja.

(Auto) Regulação

Particularmente, em relação à criminalidade económica, há 20 anos que Anthony J Daboub (et al.), da Universidade do Texas (8), argumentava que estes delitos, quando praticados num coletivo, sê-lo-iam em grupos homogéneos onde se pode construir mais facilmente confiança mútua e onde o risco de dissidência é muito menor. A partir daqui, podemos perceber como abordagens tradicionais perdem a sua eficácia por completo. Isto porque, quando numa determinada organização se forma um conluio em que os sistemas de incentivos, os mecanismos de controlo e os propósitos de transparência são alinhados pelos interesses próprios e em coautoria na realização do Corporate Misconduct (CM), deixa de ser possível atribuir eficácia ao controlo da auditoria, sobretudo, quando os próprios órgãos de gestão estão direta- ou indiretamente envolvidos na comissão dos delitos, como foi no caso Siemens (9) e outros entre nós.

Corporate Governance de qualidade

Ora, se considerarmos que boa parte dos fatores que favorecem o conluio delituoso empresarial também são indispensáveis ao sucesso económico de uma qualquer atividade empresarial – tanto a remuneração alinhada ao desempenho, como o acordo nos objetivos a alcançar e o reconhecimento de autoridade legítima – verificamos a existência de um dilema aparentemente insuperável. Comprometer os elementos de confiança numa empresa reduz a sua eficiência e eficácia de forma duradoura. É aqui que a qualidade da gestão de topo encontra o seu lugar de maior afirmação.

Como sugere a ISO 19600, é através de uma constante comunicação de cima para baixo que se deve criar e manter uma cultura corporativa caracterizada pelo Cumprimento das regras e regulamentos. O chamado "tone-from-the-top", que ativa- e constantemente comunica o compromisso da gestão de topo com o Compliance como um valor fundamental da organização no desempenho de todas as atividades, é fundamental para a eficácia e qualidade da governação.

Importa também preservar a independência dos auditores, que pode ficar comprometida, pelas relações de excessiva proximidade entre auditores e auditados, resultante de longos períodos de cooperação. Uma rotação apropriada do auditor externo poderia dificultar a confiança e fortalecer a objetividade dos resultados das auditorias. Também a composição do Conselho fiscal deve estar sujeita a maior escrutínio pois, se este deve exercer a sua função de vigilância com competência e eficácia, mais uma vez, uma possível simetria de interesses pessoais, pode constituir um risco de conluio.

Onde foi que já vimos isto?

Alguém se espantaria se a Galp, em breve, recrutasse, para os seus quadros dirigentes, um dos viajantes à bola? E alguém estaria, nessa altura, confortável ao afirmar positivamente que a ida à bola, as bejecas e os amendoins não contribuíram em nada para criar um clima de confiança profissional conducente a tal contratação?

Concordando com a Drª. Cândida de Almeida, antiga Procuradora da República, o nosso país não é um país corrupto. Ou, pelo menos, não mais do que a França, a Alemanha, a Holanda ou mesmo a Finlândia – posso afirmá-lo a partir de observação direta. Mas é seguramente um país onde há menos vergonha e mais tolerância, também para com os corruptos!

Muito medo – pouca vergonha

Mais uma vez, somos recordados, que foi necessário o Medo da repressão criminal, pela mão do Ministério Público, para corrigir o que, durante um ano se escondeu, por não haver Vergonha.

Terei agora de meter, mais uma vez, a viola no saco, após a manifesta ineficácia dos Códigos de Conduta, agora da GALP - uma empresa liderada pelo “gestor mais competente das empresas portuguesas“, segundo a revista Institutional Investor (10)?

 

NOTAS

(1) http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/energia/detalhe/galp-diz-que-viagens-ao-euro-2016-nao-visavam-obtencao-de-qualquer-contrapartida

(2) http://sicnoticias.sapo.pt/programas/eixodomal/2017-07-17-Eixo-do-Mal-15-07-2017 Pedro Marques Lopes (min. 3:54)

(3) https://sol.sapo.pt/artigo/571646/bancada-socialista-incomodada-com-pgr

(4) http://observador.pt/especiais/boa-governacao-das-empresas/

(5) http://www2.pitt.edu/~fritspil/pinto%20leana%20pil.pdf

(6) Jensen/Meckling, Theory of the firm and managerial behaviour, JFE 1976, pag. 305 ss.

(7) Graeff, Im Sinne des Unternehmens?, in: Der Korruptionsfall Siemens, 2009, pag.158.

(8) Daboub, A. J. , Rasheed, A.M.A., Priem, R. L., & Gray, D. A., Top management team characteristics and corporate illegal activity. Academy of Management Review, 1995, pag. 157

(9) Leyendecker, Die Große Gier, 2007, pag. 65-147.

(10) http://portaldalideranca.pt/noticias/5370-lider-da-galp-considerado-melhor-ceo-de-portugal-pela-institutional-investor