Pedro Moura, Visão online,

Num país ainda muito de Senhores Doutores e Engenheiro a prática do Respeitinho (que é muito bonito) continua a vigorar como mandamento para grande parte das pessoas.

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Após a publicação recente de um artigo de minha autoria de título ‘A Bolha do Empreendedorismo’ (https://ionline.sapo.pt/560148), em que tecia algumas críticas e apresentava algumas sugestões sobre este tema, fiquei surpreendido por algumas pessoas me terem perguntado se não tinha receio de repercussões negativas devido a esse texto.

A lógica que me apresentaram é grosso modo a seguinte: sendo eu um empreendedor, inserido no chamado ‘ecossistema de empreendedorismo’ nacional, já tendo criado startups e levantado rondas de investimento em Portugal, ao apresentar publicamente uma posição não imensamente positiva e concordante sobre alguns aspectos deste mesmo ‘ecossistema’, não iria despertar a ‘ira dos deuses’ e comprometer o meu futuro profissional enquanto empreendedor, por exemplo limitando o acesso a capital de risco de startups em que estivesse envolvido ou viesse a criar?

Ou seja, e permitindo-me o leitor alguma jocosidade, quem me teceu esses comentários pressupõe que por eu ser um empreendedor, com óbvia ligação ao respectivo ecossistema, tenha assinado uma espécie de ‘pacto de lealdade virtual’ que limitasse a minha liberdade enquanto pessoa e cidadão no que toca a expressão de ideias e opiniões relativamente à ‘máfia das startups’: só comentários positivos e de apoio incondicional seriam permitidos.

Isto é ridículo. Para mim é impensável conduzir-me por este mundo sem ser com a liberdade plena para poder pensar e exprimir-me dentro dos naturais limites de uma ética de respeito pelos outros e pelas suas próprias liberdades. Comporta-te com o outro como queres que o outro se comporte contigo.

Mas, infelizmente, este tipo de atitude de auto-castração da liberdade de pensamento e expressão é tão ridículo como comum na nossa sociedade. Num país ainda muito de Senhores Doutores e Engenheiro a prática do Respeitinho (que é muito bonito) continua a vigorar como mandamento para grande parte das pessoas.

Respeitinho é não contrariar o superior, não dizer o que se pensa por medo de represálias e esperar umas migalhas ou que ‘chegue a sua vez’; é ser totalmente subserviente com qualquer tipo de autoridade (e mal vira costas chamar-lhe todos os nomes); é não fazer ondas por medo de dar demasiado nas vistas e misturar isso com doses industriais de ‘graxa’; é chegar-se a um ponto em que andar de costas curvadas e não ter opiniões sobre nada que não seja o que está no feed do facebook é natural; é fazer likes e comentários positivos e fofinhos em todos os posts e tweets de gente que ‘interessa’; é saber o ‘seu lugar’ enquanto secretamente anseia pelo ‘lugar’ do outro; é nunca, nunca discordar de ‘gente importante’ em público, enquanto pelas costas é botar abaixo; é exigir ‘respeitinho’ daqueles que se sente estarem abaixo de si. Enfim, é uma miserável condição de vida, o raio do Respeitinho.

Tão miserável é, que quem o pratica (ao Respeitinho) confunde com Respeito o que realmente faz. Mas Respeitinho não é Respeito.

Respeito pressupõe reciprocidade, igualdade, liberdade e sentido crítico. Respeito dignifica, Respeitinho, por muito conveniente que possa parecer, degrada e avilta.

Um problema é que quem só conhece o Respeitinho e o pratica perante os outros, assim que passa para a mó de cima (o que quer que isso seja) vai também exigir dos outros Respeitinho. Faz-me lembrar os caloiros universitário que sofrem praxes abusivas ganhando uma raiva de morte aos veteranos: chegados ao segundo ano aplicam aos seus próprios caloiros abusos tão maus ou piores que os que sofreram.

É assim o ensino do Respeitinho. E este tipo de comportamento existe em abundância em Portugal (também existirá noutros locais, mas agora falo do nosso país) minando toda a estrutura social e económica pela sua raiz. Vive-se entre o Respeitinho e a raiva a quem o Respeitinho se presta.

O Respeitinho produz espíritos amorfos, com pouca capacidade crítica e ainda menos capacidade de pensamento independente, o que por sua vez gera um (não) Espaço Público reservado à ‘elites’, dominado por sound-bytes, unanimismos e elocoções inflamadas (e tipicamente facciosas) por comentadores políticos, especialistas e opinion-makers. E uma Democracia necessita de um Espaço Público participado com vigor, de uma Sociedade Civil forte, que participe e atue continuamente na construção reflexiva da realidade.

As estruturas de poder em Portugal (políticas, académicas, estatais, empresariais) têm no Respeitinho um dos seus principais pilares organizacionais (não declarados), tendendo a abolir pensamentos, ações e decisões não totalmente ‘alinhadas com a cultura da organização’, que possam colocar em causa o Status Quo e, pecado, provocar alguma mudança. A nossa economia sofre imenso com isto, pois organizações estáticas, com estruturas que privilegiam a harmonização e o conformismo cultural e comportamental estão sempre em desvantagem competitiva, apresentando resultados deficientes ao nível quer da produtividade quer da adaptação a um contexto internacional cada vez mais competitivo e inovador.

Mas o Respeitinho traz também uma outra consequência: a sua prática repetida viola algo que é inato no ser humano: o sentimento de justiça e o desejo de liberdade. E esta violação gera naturalmente em quem o pratica um ressentimento que se acumula e que é nefasto a todos os níveis.

Por exemplo, geralmente as práticas de fraude e corrupção assentam num quadro conceptual assente em três conceitos: a Motivação para praticar o ato, a noção de Oportunidade (se se vai ou não ser ‘apanhado’) e a Racionalização (quem pratica o ato cria uma justificação pessoal que dê sentido ao ato). Alguém amarfanhado pela prática continuada do Respeitinho (e que não veja frutos dessa vassalagem ao longo) tem muito mais propensão a auto-justificar um ato de fraude ou corrupção que alguém que tenha optado pela opção mais digna e ética do Respeito.

Retornando ao início deste texto, aos comentários que me fizeram a advertirem-me para as possíveis consequências negativas de eu ter a mania de dizer o que penso respondi algo que costumo repetir muito: não quero viver assim, com medo de exercer a minha liberdade.

Sim, o ‘empreendedorismo’ e as ‘startups’ vivem um momento de enorme euforia e hype mediático, e há aspectos melhores e piores. Devemos enaltecer os primeiros e aproveitar os segundos como oportunidades de melhoria. E para isso temos de identificar e debater de forma aberta, frontal e crítica o que se pode melhorar. É isso que faço e continuarei a fazer, sem medo de ‘represálias’ ou de ‘bichos-papões’. Acredito que há um caminho de valor que liga o empreendedorismo a um melhor futuro de Portugal, e estou a lutar por isso como muitos outros.

Aproveito este espaço que gentilmente me dão e peço um favor a todos aqueles que ‘querem ser empreendedores’: se forem praticantes do Respeitinho (quer ‘respeitinhadores’ quer quem se faz ‘respeitinhar’), deixem-se ficar onde estão que não fazem cá falta. Há, infelizmente, em Portugal muitos lugares onde podem viver uma existência tranquila. Por aqui quer-se gente (respeitadora) que goste de desafiar a realidade, de criar coisas novas com valor e sentir-se viva com isso, não sobreviver no pântano de andar sempre a agradar a tudo e a todos já não se sabe muito bem para quê. Lembrou-me uma canção do Sérgio Godinho de que gosto muito (excerto de “Que Força é Essa”):

“(…)

que força é essa

que trazes nos braços

que só te serve para obedecer

que só te manda obedecer

que força é essa, amigo

que força é essa, amigo

que te põe de bem com outros

e de mal contigo

(…)”

 

O Respeitinho é muito bonito, mas não me assiste.

 

p.s.: Já agora, impera nomear também para candidato a prémio na categoria de ‘práticas sociais que não deviam existir’ o primo venenoso do Respeitinho: o Bota-abaixismo. Falar mal de tudo por sistema, sem critério, reflexão e, sobretudo, sem apresentar argumentos intelectualmente honestos, propostas de soluções e disponibilidade para resolver o que se critica é simplesmente estúpido.