André Vieira de Castro, Visão online,

 

Subfaturação ou Faturas Falsas com cúmplice informático

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Na ressaca do Websummit, que trouxe a Lisboa dezenas de milhares de peritos tecnólogos de todo o mundo, entendi oportuno refletir um pouco sobre a capacidade que as novas tecnologias têm de permitir “falcatruas”, quando assim programadas pelo Homem (nota paralela: não está longe o dia em que os sistemas de informação, movidos a inteligência artificial, possam de per si degenerar na sua ética binária…).

Ainda que nos anos 80 do século passado existissem já alguns, raros, sistemas informáticos de gestão em empresas, é apenas a partir de meados dos anos 90, e sobretudo com toda a força neste novo milénio, que os softwares de gestão, e especificamente os de faturação, se massificaram ao ponto de os encontrarmos hoje em qualquer estabelecimento comercial, seja ele fixo ou móvel.

A nossa Administração Tributária (AT) procurou adaptar-se a esta efervescência tecnológica e assim surgiram mecanismos de certificação de softwares, de validação e encriptação de documentos fiscais, de atribuição de códigos instantâneos para o transporte de mercadorias (permitindo a desmaterialização dos seus documentos), do cruzamento de informação entre vendedor-comprador, entre muitos outros detalhes (alguns Dantescos, diga-se!) que a nossa AT consegue hoje obter, dispondo do que no Websummit rapidamente se classificaria como Big Data.

Mas a AT andará sempre um passo atrás da capacidade humana em encontrar espaço para o… improviso.

Há cerca de 4 anos começaram a surgir, com mais veemência, notícias sobre programas de faturação que permitiam anular, esconder, apagar ou enviar para o ciberespaço algumas das faturas que tinham acabadas de ser emitidas. Com particular (julgo que não exclusiva) incidência nos programas utilizados no setor da restauração, era já de conhecimento generalizado que existiam os chamados “Botões Mágicos” em alguns programas. Botões relativamente dissimulados no ecrã e que, quando acionados, faziam desaparecer de todos os registos o documento de venda acabado de emitir. Prejudicando a AT, em primeira análise. A todos nós, no final de contas!

Conhecido ficou também o “Modo Formação”. Acontece quando se pretende formar um novo colaborador, permitindo-lhe fazer todas as operações em modo de teste sem correr o risco de os enganos próprios dessa fase de instrução causarem grandes danos. Só que, utilizado fora desse contexto, permite também a emissão de documentos de venda falsos, não submetidos depois à AT, reduzindo a coleta em IVA e IRC do estabelecimento em causa.

Estas foram as 2 formas mais comummente detetadas, sem prejuízo de outras, e que a AT procurou desmascarar o mais possível.

Mas, aceitando o risco de dar por boas as publicações que se encontram na internet (em sítios como o Sol ou a Exame Informática), darei “nomes aos bois”, como se diz na minha terra.

No portal das finanças pode consultar-se a lista de programas de faturação certificados. Aí pode também verificar-se que existem apenas 3 programas com o estatuto de “Revogado”.

Num desses programas, o IECR, foi detetado em 2014 que utilizava estas “funcionalidades” já referidas para reduzir (e drasticamente) a faturação declarada dos estabelecimentos. O então Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, emitiu um despacho a revogar o certificado a partir do mesmo dia da sua publicação, 24 de Abril de 2014. Naturalmente isto terá obrigado a uma grande ginástica de adaptação às empresas que utilizavam o software em causa. Estranhamente não se encontram porém quaisquer registos de lamentos por parte destes…

Os outros 2 programas assinalados como revogados pertencem à mesma empresa, o Grupo PIE (no caso, o CRMais e o WinPLUS – habilidosamente também conhecido por WinREST).

E aqui o caso é de extrema complexidade. Além dos esquemas já aludidos (botão mágico e modo simulação), o Grupo PIE desenvolveu um aplicativo (um ficheiro “sime.exe”) que distribuía pelos seus agentes revendedores ou diretamente aos clientes (em Portugal e um pouco por todo o mundo), e que permitia – correndo a aplicação – corrigir em baixa “generosa” os valores a declarar pelas empresas à AT. O ficheiro era entregue ora numa pen drive ou retirado de um sítio independente na internet, com a password fornecida pelo Grupo PIE, tornando difícil de estabelecer o rasto a qualquer investigação.

Mas uma operação conjunta da AT e da PJ (com mais de 100 elementos no total) conseguiu que já este ano de 2016 fossem apreendidas 110 aplicações WinREST, 10 pen drives e vasta documentação. Foram estabelecidos vários arguidos que responderão entretanto por crimes de fraude fiscal qualificada, instigação ao mesmo crime e falsidade informática.

Consequentemente foi emitido pelo atual Secretário de Estado (Fernando Rocha Andrade) um despacho de revogação do programa em causa, publicado em 1 de Agosto de 2016. O que não se compreende é que o mesmo despacho tenha, ao contrário do que sucedera 2 anos antes, permitido que o software se mantivesse ativo até 15 de Setembro, podendo ser utilizado por cerca de 10.000 empresas (por extenso para que não restem dúvidas: DEZ MIL empresas). Ou seja, numa área tão sazonal como a da restauração/hotelaria, legitimou-se o direito à subtração de faturas durante o Verão… sinal dos tempos.

E assim vai o mundo…